“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 11 de fevereiro de 2012

De primeira água

    Trabalhando nos moldes em que passámos a reconhecê-lo desde “Traffic - Ninguém Sai Ileso"/Traffic" (2000), "Vidas a Nu"/“Full Frontal” e “Solaris” (2002), Steven Soderbergh dá-nos em “O Bom Alemão”/”The Good German” (2006) uma cativante obra pessoal, que lhe dará ou não bons resultados de bilheteira, mas se percebe que, como os citados filmes anteriores, lhe deu muito especial gosto fabricar.
     Com base numa carreira neste momento já vasta e diversificada, o cineasta consegue alternar filmes mais pessoais com outros mais comerciais sem grandes problemas, estabelecendo assim o tipo de compromisso com os estúdios que, como actores, Orson Welles ou John Cassavetes estabeleceram para poderem permitir-se dirigir os filmes que dirigiram. E esse compromisso estabelece-o ele com tanto maior facilidade quanto os “Ocean’s Eleven” (2001), “Ocean’s Twelve” (2004) e o que agora se anuncia são impecavelmente fabricados de acordo com as regras de Hollywood, e quanto a sua actividade se diversificou, tendo-se tornado também produtor.
   Esta chamada de atenção preambular justifica-se tendo em conta o tipo de objecto cinematográfico que “O Bom Alemão” é, com a sua temática de “filme negro” situada na Alemanha do imediato pós-guerra, com a sua fotografia a preto e branco e com uma definição visual que remete para o cinema americano dos anos 40 do século passado, embora com um tratamento muito especial da luz. Visualmente, e tirando também partido do aproveitamento de imagens da época, o filme oferece substanciais motivos de interesse, que se aliam à definição das personagens de modo que torna secundário o perfeito encaixe lógico da sequência narrativa.
                                
      Jake Geismer/George Clooney é um oficial americano encarregado de uma missão, a de fazer passar para o lado americano, sem deixar vestígios comprometedores, um cientísta nuclear. Simplesmente, este é casado com uma antiga paixão sua, Lena/Cate Blanchett, o que vem dar motivações especiais a Jake, lançado em arriscada missão a partir de um contacto com um motorista, Tully/Toby Maguire, que desaparece a meio do percurso. O que, pessoalmente, considero mais interessante neste filme, para além do referido tratamento visual e da montagem, ambos da responsabilidade de Soderbergh sob pseudónimo (como acontecera nos três citados filmes anteriores quanto à fotografia e no terceiro quanto à montagem), é que o espírito da narrativa se inscreve no género “filme negro” de uma maneira assaz feliz, que passa por deixar o protagonista perante os limites da sua própria acção, não apenas por virtude da acção das forças adversas, mas pela própria natureza das coisas, neste caso das pessoas. Além disso, não deve esquecer-se que o clima visual reforça o ambiente em que a acção do filme decorre, precisamente o do início da Guerra Fria, e assim as referências visuais do filme não surgem por acaso.
      No seu todo, “O Bom Alemão” surge, deste modo, perfeitamente coerente e conseguido, o que passa pelo trabalho de composição quer de George Clooney quer de Cate Blanchett, ele mais do lado de Humphrey Bogart, ela mais do lado de Marlène Dietrich, ambos em trabalhos de grande precisão. Obviamente que o final do filme cita expressamente o célebre ”Casablanca”, de Michael Curtiz (1942), e fá-lo de uma maneira não literal, o que lhe dá um sabor todo outro, mas essa citação insere-se num filme repleto de referências, de género cinematográfico e de época, o que a torna mais interessante e, ao mesmo tempo, quiçá menos ao alcance da generalidade dos espectadores actuais. Outras semelhanças, facilmente detectáveis, com “Chinatown”, de Roman Polanski (1974), são não só pertinentes como dão perfeitamente conta do patamar fílmico em que este filme deve ser situado.
                                 
    Nome maior no cinema americano actual, Steven Soderbergh é um cineasta que merece ser acompanhado filme a filme, mas que me surge como evidentemente mais interessante nestes “pequenos filmes” mais pessoais, em que se percebe que mais investe do seu talento de criador cinematográfico, até porque neles está presente em maior número de funções-chave da criação fílmica. Nessa linha se inscreve este “O Bom Alemão” como obra de “primeira água”, numa obra que, olhada retrospectivamente, merece o nosso maior apreço, embora dela não nos tenham chegado alguns filmes dos anos 90 do século XX.
     Aliás, deve-se dizer que o fascínio inequívoco que se desprende deste filme não está isento de ambiguidade, uma vez que exige do espectador uma atitude de distanciamento cúmplice. Quero com isto dizer que este filme citacional de Steven Soderbergh deve ser visto, para ser plenamente entendido e degustado, com o mesmo sentido de diatanciamento que o cineasta lhe conferiu, o que a época de que trata, o género que escolheu e o tratamento visual e sonoro do filme acentua, e os actores ainda mais enfatizam (o que, sublinhe-se, não sucedia com “Chinatown”).
   Vale a pena conhecer este filme, assim como vale a pena conhecer a obra anterior de Soderbergh e continuar a segui-lo no futuro.

Junho 2007

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