“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Uma mulher moderna

         Há nos últimos anos em Portugal uma febre de filme histórico, especialmente sobre o século XX, o que se compreende devido à necessidade que o país sente de recuperar, reconstruindo-a, a sua memória colectiva. Não estará, na maior parte dos casos, primacialmente em causa a grande qualidade dos filmes, que, contudo, por vezes se verifica, mas a necessidade de proceder, também no cinema, a uma tecitura que permita uma nova quadrícula, aberta e sem limitações, do século XX português.
         Foi neste quadro que eu entendi o aparecimento de “Florbela”, de Vicente Alves do Ó (2012), a segunda longa-metragem do seu realizador e argumentista, com experiência anterior na área do argumento e na realização de curtas-metragens. Foi assim que o encarei e se calhar fiz mal, pois o filme, inspirado livremente na vida de Florbela Espanca (1894-1930), um mito da literatura, da cultura e da vida portuguesa do século XX, consegue a pouco e pouco, mas com grande atenção e acerto, centrar-se na sensibilidade própria da protagonista, de que constrói o mistério respeitando o mito.
                 
           Este é um filme que, situado nos anos 20, se presta a ser entendido como filme de época, o que em certa medida efectivamente é, sem espavento mas procurando a fidelidade e o rigor na reconstituição. De facto, o seu intuito é mais precisamente o de recriar a personagem, interpretada por Dalila Carmo, e o seu contexto social e afectivo, com destaque para o seu terceiro marido, Mário Lage/Albano Jerónimo, e para o seu irmão, Apeles/Ivo Canelas. A sensibilidade pessoal, feminina e exacerbada da protagonista está muito bem definida a partir do exterior, na maior parte dos casos, e vê-se apurada pelo encontro com o irmão, uma outra sensibilidade, aguçada e terminal pela morte da noiva. Neste quadro, em que a poetisa diz não conseguir escrever, o marido, um homem prático e do mundo, faz o esforço apreciável de tentar compreendê-la, não a estragando.
          O estrago, inevitável, vai ser trazido pelo irmão (uma intrepretação notável de Ivo Canelas), com a sua dor intransmissível e intransponível, e o melhor do filme situa-se precisamente nessa relação entre os dois irmãos, em que entre eles passa e não passa alguma coisa de pessoal e único, adveniente da memória comum e do consequente afecto recíproco. Para ela, os maridos mudam e passam mas esse afecto permanece. Não sendo um filme indispensável, visto tratar-se de alguém muito presente na memória e na história da literatura portuguesa do século XX pela sua qualidade poética e pela sua morte precoce, “Florbela” de Vicente Alves do Ó torna-se um filme inteiramente justificado e mesmo necessário pela qualidade e a dignidade compatível e exigível que apresenta, para o que se torna fundamental, no modo como a trata, a compreensão que revela da própria protagonista.
                  
          Construindo gradualmente a sua protagonista e o seu mistério, e com uma Dalila Carmo em muito bom nível e muito expressiva, este é um filme à altura daquela que retrata, com bons apontamentos do lado do cinema, nomeadamente na regulação das distâncias e no tratamento do espaço, mas também quando oportunamente investe o imaginário, e bons momentos a nível dramático, em especial a partir do aparecimento da ideia de morte a Florbela, nos corredores do hospital, até ao muito bem concebido e construído plano final. Num todo que se apresenta de satisfatória coerência e fidelidade biográfica, a dor íntima, pessoal, de Florbela e Apelas (também de Mário, de uma outra maneira) torna-se visível, convincente e comovente.
          Para o caso de ainda não o terem visto, vejam este filme, porque vale muito a pena. No caso de não conheceram o que escreveu, leiam a poesia (sobretudo a poesia) de Florbela Espanca, que neste filme surge tal como sem dúvida terá sido: uma mulher moderna, em avanço em relação ao seu tempo. No caso de já conhecerem os seus escritos, leiam-nos de novo, releiam-nos sempre, em especial a poesia. É pelo que escreveram que, enquanto forem lidos, os poetas nunca morrem.

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