“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 10 de junho de 2012

"Cosmopolis" e o céu de perugia

       Faz sentido que quem fez filmes baseados em William S. Burroughs e J. G. Ballard se tenha lançado no projecto de fazer um novo filme a partir de "Cosmopolis", de Don DeLillo, com Philip Roth e Cormac McCarthy um dos mais importantes romancistas americanos da actualidade - o mais moderno mesmo dos três. De facto, David Cronenberg não é um cineasta qualquer, motivo pelo qual as expectativas eram altas. Devo começar por dizer que essas expectativas não foram defraudadas, pois o cineasta faz do seu último filme, "Cosmopolis" (2012), uma obra pessoal e muito conseguida, que se integra no seu universo pessoal de maneira inteiramente coerente.
      A chave do romance estava em tentar dar um rosto ao capital que domina a América, uma identidade em que ele pudesse ser reconhecível nas suas obsessões, no seu poder e no seu medo, que pudesse ser também fascinante e sobre a qual fosse possível tentar exercer pressão e violência. Ora o filme de Cronenberg consegue captar e transpôr todos esses aspectos do protagonista, Eric Packer/Robert Pattinson, para o que segue à letra os diálogos do romance, mas consegue ao fazê-lo em filme mostrar mesmo o que o romance apenas descreve, superiormente embora. E é ao não torná-lo meramente repelente, ao mostrar o seu lado humano que tanto a escrita de DeLillo como o filme de Cronenberg tentam evitar o cliché (embora trabalhando sobre ele) para tentarem ir mais longe, até ao coração da realidade.  Uma realidade que, em termos pessoais, caracteriza o protagonista do lado do excesso, de um excesso sensorial e de riqueza, de risco e de gosto por esse excesso de risco sob uma aparência neutra, indiferente e fria.        
                                     
       Claro que se pode considerar que a realidade do capitalismo pós-industrial, como tem sido denominado, de há muito ultrapassou esta ficção moralista, que chega à conclusão de que o capital é impotente para proteger os que explora e para se proteger a si próprio, pois a fase em que estamos (e se calhar já estávamos em 2003, quando o romance foi escrito, e em 2000, ano em que ele decorre) é a de um capitalismo especulativo, sem rosto, sem identidade, sem escrúpulos ou qualquer vestígio de moral - o "espectro do capitalismo" que no filme surge num placard luminoso. Mesmo assim, a parábola do romance e do filme permanece intacta no seu interesse, quanto mais não seja a um nível simbólico, por mostrar um enclausuramento voluntário de quem detém todo o poder, que proteja daquilo e sobretudo daqueles que domina - e também dos sons, o que aliado à fixidez da câmara dá ao espaço do interior do veículo um ar de um outro mundo - enquanto atravessa a cidade no interior da sua limousine na demanda do corte de cabelo perfeito e, durante o percurso, vai tendo diversos encontros, no interior e no exterior da viatura (1).
       Talvez o filme de David Cronenberg esteja muito bem resumido nos genéricos de abertura e de fecho, de formas abstractas e o último de cores vivas, sintetizando desse modo que o poder, já pouco poderoso, perante o qual se está não passa de uma abstracção a que o filme tentou conferir traços concretos. Conseguiu-o? Penso que sim, sem estabelecer laços de cumplicidade com o protagonista mas devolvendo também o seu lado sedutor e friamente humano, que não se detém perante nada nem ninguém, destinado como está a devorar-se a si próprio deixando no caminho inúmeras vítimas gratuitas. Na sua visão fria e clínica do cinismo exacerbado do mundo contemporâneo, o que o filme coloca em imagens é um vazio preenchido por espectros, numa sociedade espectral insusceptível de ser comovida ou mesmo movida, muito menos removida, pois os seus vícios, entre os quais a violência, são indissociáveis da sua natureza predadora e perversa. Mas também não devemos ser ingénuos nem alimentar ilusões, pois haverá sempre quem gostasse de estar no lugar de Eric Packer, pronto a ascender ao seu lugar e à sua posição - e se não fosse ele, era outro, como se compreende facilmente e os sucessivos encontros que ele vai tendo ao longo do seu trajecto com homens e mulheres, para ele meramente instrumentais, confirmam.                             
                     
        Será mesmo por isso que me interessa muito mais o "céu de perugia" que surge como recordação num dos poemas do último livro de Nuno Júdice (2), um dos melhores poetas portugueses contemporâneos, na sua perseguição do poético, já que a poética fria de "Cosmopolis" mostra um alheamento em relação à vida comum que nos faz imediatamente pensar na poética dessa mesma vida comum, como a de Nuno Júdice é há quarenta anos, numa perseguição da perfeição e da beleza a partir da experiência, que já é muito diferente em quem tão fora deste mundo, como o protagonista de "Cosmopolis", está e, embora lhes possa ser sensível ainda, tudo avalia já em termos de riqueza e de dinheiro, de excesso sensorial e de requinte gratuito. E digo-o porque penso que a poética dos quadros, dos ecrãs, mesmo a do cinema, embora seja específica de cada um deles deve ser construída e descoberta a partir do que construímos e descobrimos do lado de cá deles, fora deles, antes ou depois deles na própria experiência, sob pena de se tal não acontecer sermos vampirizados por eles. Só isso nos permitirá descobrir se não passámos já para o lado de Eric Packer, e não estamos nós também a, por contágio, tudo avaliar nos termos dele, aliás muito bem explicitados nos diálogos, nomeadamente a propósito do tempo.
      Mesmo assim, há também os artistas que, no meio ou suporte que utilizam, criam directamente uma poética própria, como em grandes pintores, fotógrafos e cineastas aconteceu e continua a acontecer, nomeadamente em David Cronenberg, de quem "Cosmopolis" pode ser visto desse lado e como perfeitamente consistente, na sua poética própria, com "O Festim Nu"/"Naked Lunch" (1991) e com "Crash" (1996), embora a um nível cada vez mais frio e mais distante, como de facto o seu tema também permite e "Um Método Perigoso"/"A Dangerous Method" (2011) se limita a permitir compreender parcialmente, embora se justifique a si próprio e valha por si mesmo como filme superior sobre o que comanda o corpo ou o deixa sem controlo e sobre a história. Nem a revolta nem a violência podem dar conta de uma entidade abstracta, que em "Cosmopolis" só simbolicamente assume ainda uma forma concreta e individuada na arrojada visão poética do cineasta, derivada da do escritor. No seu ser concreto, Eric Packer dedica-se já apenas ao estilo com que investe e vive a beleza da experiência terminal da sua própria vida, o que faz inequivocamente parte da beleza e da poética do filme - e faz lembrar "Os Malditos"/"La Caduta degli dei", de Luchino Visconti (1969).
                      
          Percebe-se que, colocado perante a escolha entre "Mistérios de Lisboa" ou "Cosmopolis", Raoul Ruiz tenha escolhido o primeiro para aquele que veio a ser o seu derradeiro, mas superior filme. O que podia ser feito a partir do segundo foi muito bem feito por David Cronenberg, o que mais uma vez abona em favor do produtor, Paulo Branco. Graças a ele, "Cosmopolis" de David Cronenberg poderá, por sua vez, funcionar para alguém como o "céu de perugia", recordado por Nuno Júdice no seu poema, já que o seu autor é um dos maiores cineastas modernos do nosso tempo, com uma poética moderna que vai trabalhando de filme para filme de forma persistente ao longo de uma obra em que a desumanização do humano e da sociedade, a par da tecnicização, ocupa lugar de grande relevo, como neste filme exemplarmente volta a acontecer.
         Tem, de facto, um brio e um significado muito especial um filme como este, que não hesita em mostrar o eventual atractivo e até o lado humano de uma riqueza desmedida que vive permanentemente no fio da navalha, não sabendo nem querendo saber do que a rodeia senão naquilo que pessoalmente lhe possa tocar, indiferente a argumentos pessoais ou técnicos, em busca quiçá de um momento de absoluto em que se possa eventualmente consumir, consumar e desfazer. Para o transmitir, "Cosmopolis" de David Cronenberg atinge um nível cinematográfico notável, no prosseguimento de uma obra em que a violência da sociedade, nomeadamente da sociedade contemporânea, tem sido perseguida sem esmorecimento até ao aparente absurdo que humanamente a pode ainda justificar. Ele será mesmo o mais importante cineasta moderno a compreender e mostrar a sociedade contemporânea sem preconceitos ou falsos pudores, indo até ao fim da experiência humana da contemporaneidade.

Notas
(1) Sobre estas questões do capitalismo contemporâneo continua a ser exemplar o trabalho de investigação de Hermínio Martins, para que me permito chamar a atenção a partir do seu último trabalho que conheço: "Empresas, mercados. tecnologia - Uma perspectiva biográfica", in revista "nada", nº 16, Abril 2012, páginas 17-39, em que, com recurso a uma fina ironia, a que já nos habituou, mostra como é a esmagadora maioria que hoje em dia está a perder rosto e identidade. 
(2) Ver "O equívoco das ruas", in "Fórmulas de uma luz inexplicável", Dom Quixote, Lisboa, 2012, páginas 64-65. ("Um/equívoco/às vezes equivale a uma conclusão verdadeira." - Fernando Guimarães)

2 comentários:

  1. Contudo, e apesar de "Cosmópolis" ser um bom complemento à obra de Cronenberg, desiludo-me com o facto de o cineasta ter perdido aquela crueza,aquela vitalidade que imbuia os seus primeiros filmes; nesta desilusão, estou plenamente de acordo com aquele homem de ferro do Ípsilon. Lembro-me de ver uma entrevista em que Cronenberg, aquando da estreia de "Uma História de Violência" no festival de Cannes, sugere que se cansou daquele seu cinema que referi, em favor de um cinema demasiadamente moderado. Não consigo deixar de pensar, portanto, que, devido ao tempo ou pela mera presença fatalista da indústria cinematográfica, que Cronenberg perdeu, já, o seu cunho como autor ( ou, talvez, o tenha reinventado. Enfim...). Apreciei com muito gosto o seu Blog. Cumprimentos. Nuno Oliveira

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  2. Esta crítica mereceu destaque na rubrica «A "Polémica" do Mês» do Keyzer Soze’s Place, disponível aqui: http://sozekeyser.blogspot.pt/2012/06/polemica-do-mes-13.html

    Cumps cinéfilos!

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