O cambodjano Rithy Panh é um nome de referência do documentarismo contemporâneo e o seu mais recente filme, "A Imagem Que Falta"/"L'image manquante" (2013), o primeiro da sua autoria a ter estreia comercial em Portugal, é uma obra fascinante, pessoal e poderosa que me causou a mais viva impressão.
Em primeiro lugar, o cineasta abraça toda a subjectividade decorrente de enfrentar a sua infância no seu país de origem, quando este foi tomado pelos Khmers Vermelhos e o regime dictatorial de Pol Pot, que veio a estar na origem de terríveis privações e do monstruoso genocídio de uma população em nome de uma ideologia. Ao olhar para trás a partir do seu próprio ponto de vista o cineasta proporciona pontos de referência sólidos decorrentes de uma experiência pessoal, o que torna o seu filme um testemunho especialmente credenciado e poderoso, que o comentário off dito por Christophe Bataille expressa muito bem.
Em segundo lugar, e como é natural num documentário sobre uma época precisa, Rithy Panh socorre-se apropriadamente de excertos de filmes dessa mesma época, nomeadamente de documentários de propaganda, que vêm dar figura e rosto às personagens e personalidades que viveram os acontecimentos.
Mas há um terceiro ponto que a meu ver surge como fundamental, que é a figuração do infigurável mediante o recurso a pequenas figuras de barro, que no início e durante o filme vemos serem criadas. Na sua progressivamente maior definição visual, essas figuras miniaturais representam pessoas concretas mas representam também todas as outras envolvidas na situação, criadas e recriáveis a partir do mesmo barro. Assim nos surgem sucessivamente a mãe que é denunciado pelo filho, o pai e a mãe do próprio cineasta com a carga afectiva que para o cineasta-narrador assumem, a mulher que morre por não conseguir ter um parto, entre outras. E ao vermos essas figuras assim representadas vêmo-las a elas e vemos todas as outras.
Mas, com o persistente recurso a imagens documentais e a imagens do cinema, Rithy Panh consegue dar-nos o rosto risonho da propaganda e os rostos verdadeiros das vítimas indefesas, não deixando qualquer margem para dúvidas sobre a origem ideológica do regime mortífero de Pol Pot nem sobre a sua origem política. Além disso, permite-se e muito bem mostrar excertos dos horríveis filmes de ficção da época a que as populações eram obrigadas a assistir, pondo assim em causa a imagem do cinema de que justamente se serve para o seu filme. Mas a inclusão da história do "operador de câmara desobediente" funciona plena e exemplarmente quanto ao poder dessa imagem do cinema.
Por fim, ao colocar as figurinhas dos seus pais a interrogá-lo na actualidade sobre o seu próprio trabalho o cineasta descreve um percurso completo, circular, que o questinar de si próprio e do seu trabalho cumpre de forma exemplar.
No prosseguimento de uma obra muito importante, em que são de destacar "La terre des âmes errantes" (2000), "S-21: La machine de mort Khmère rouge" (2003) e "Dutch, le maître des forges de l'enfer" (2011), além de filmes de ficção, "A Imagem Que Falta" é um filme indispensável até porque, muito justamente, aponta para que a imagem que falta do seu título é, naturalmente, impossível de encontrar.
Que as figurinhas de barro criem no filme um efeito de distanciamento surge num documentário como insólito mas deliberadamente procurado e aumenta o inegável impacto emocional do filme, que advém de ele mostrar a verdade que a propaganda escondia, uma verdade que, sendo humana é também ética e política. Por outas palavras, esse é um distanciamento que, em vez de afastar, aproxima, e que o questionar do cinema completa. De Rithy Panh queremos mais, queremos conhecer tudo, pois trata-se de um cineasta notável cuja obra urge conhecer na íntegra.
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