"Debaixo da Pela"/"Under the Skin" é a terceira longa-metragem do inglês Jonathan Glazer (2013) e a primeira que dele vejo. Tinham-me chamado a atenção para o filme mas só mesmo agora consergui vê-lo.
Com Scarlett Johansson a interpretar a mulher que não se sabe quem é, de onde veio, que intenções tem, sobre ela o cineasta constrói o mistério do filme, que começa por assumir um carácter predador, mortal, para depois se transformar numa tomada de consciência de si mesma da personagem.
Jonathan Glazer atinge aqui um nível de perfeição formal, na exploração do ser físico da actriz, nos efeitos digitais e na construção narrativa do filme - muito bom o momento em que na paragem de autocarro começa a reviravolta da protagonista - e Scarlett Johansson tem aqui o melhor papel que hoje em dia poderia desejar, pois ela é, nas novas condições do filme, o seu centro físico, do plano médio ao grande-plano e ao plano de pormenor.
É muito bom que "Debaixo da Pele" preserve o seu mistério até ao fim, pois assim deixa o espectador sem explicações razoáveis e prosaicas: evidentemente, as cinzas. E a este nível de construção fílmica do filme e do seu mistério eu gosto sempre muito.
Que um filme possa hoje dizer tanto com tão pouco é mérito inegável do cineasta, também co-argumentista com William Campbell a partir de romance de Michel Faber, mas também da própria actriz, já que por ela, pelo corpo e a inteligência dela, passa aquilo que de mais importante o filme tem a mostrar e a dizer.
Alien ou sonho, este é sempre um filme de fantasia superior com uma figuração masculina irónica e justa e uma mulher que vale o mistério. Apenas rosto? E debaixo da pele o quê? Quem, porquê e para quê? Esse o belo mistério de uma bela mulher.
Sem nome ou o corpo debaixo da pele
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O início de “Under The Skin” surge a partir de um minúsculo ponto luminoso projectado de um cosmos em formação. A feliz ambiguidade dessas imagens, em movimento alucinado, leva-nos à revelação de um olho, confirmando que, afinal, esse mesmo universo em expansão é, sobretudo, um universo humano. Por isso, o sentido da expressão fundadora que diz das trevas à luz é agora actualizada por “No princípio era o olho”. Prosseguindo a constituição dessa feliz ambiguidade, no exacto momento em que o olho nasce, começamos a ouvir soletrar letras, as quais, num ápice, se vão constituindo em palavras simples e isoladas, sem nenhum sentido, ou talvez não. Não é a boca então que fala, mas o olho. Por isso, a expressão fundadora é reactualizada em “No princípio era a palavra”, num eterno retorno à primazia inevitável da abstracção. Fica assim feita, em breves momentos, um relato da constituição deste cosmos. Só isto é suficientemente genial para dizermos que o filme de Jonathan Glazer é já um ganho.
O que virá a seguir garantirá essa profecia, ou melhor, a pele que se desprende e que mostra o espírito – que apenas pode ser traduzido por corpo –, terá o olhar e o dizer (pouco) como expressões desse universo humano, aparentemente cruel, mas que no desenrolar do filme se revela tardiamente afectuoso e, por isso, carregado de humanidade. O filme do jovem realizador inglês tem ainda esse mérito, jogando com o mistério desde o início até ao fim quer enganar-nos, isto é, quer fazer passar o terrível dos tempos memoriais e actuais. Só que o resultado é justamente o seu contrário. Se o mistério é inalcançável, a humanização, essa sim, é possível.
O que se concretiza desse cosmos recém-formado começa com o emergir de um motard (Jeremy McWilliamsem) em velocidade vertiginosa, que recolhe e traz uma mulher morta para um espaço branco, que, por ser o vazio, é afinal a negação de ser espaço. Aí, nessa ausência de lugar, ocorre uma transfiguração: outra mulher (Scarlett Johansson) reinicia uma existência que será vivida num mundo real e com pessoas reais. Essa mulher sem nome, assumindo-se como uma autêntica predadora, sinaliza, seduz e conduz, pela sua beleza, homens para um outro espaço, igualmente vazio como o anterior. Em oposição, esse espaço é negro e viscoso, onde esses seduzidos vão-se atolando numa descida irreversível, começando-se a decompor por asfixia e num movimento de extinção. Ela irá à frente, os homens atrás; ela regressará, eles não, ela ao voltar passará por uma placa negra: um espelho que não permite ainda a sua autodescoberta.
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ResponderEliminarEssa sedução cruel e enganadora assentará na ausência de afectos e num rosto de uma frieza arrepiante e feiticeira. Só que essa prática desumana, continuada e repetida, tem um retorno, ou seja, o filme de Jonathan Glazer não se fica apenas por uma visão desumanizada, como se o cosmos construído tivesse esse fim. O que há, por um lado, é um mistério que subsiste com várias interpretações ou soluções; por outro lado, há um universo de índole humana que surpreendentemente tende a humanizar-se. Ambas as situações coexistem mas não podem ser confundíveis. É isso o que o filme mostra por intermédio dessa mulher misteriosa e predadora, que, a dado momento, tende a sentir, a condoer-se, a acariciar e a sofrer.
Antes, esse regresso tem um auge de crueldade, é a cena impiedosa do afogamento do casal numa praia inóspita, da criança que fica sozinha, chora e desprotegida morrerá durante a noite, e do naturista checo que tentará salvar o casal. Ele será assassinado a frio com violência e em acto de misericórdia pela predadora, depois de ter chegado à costa exausto e derrotado por não ter conseguido evitar os afogamentos. Na sequência desta situação ressurgem o motard, em busca de um novo corpo, e a mulher misteriosa que, ao volante da carrinha conduzida desde o início da sua missão, escuta as notícias transmitidas pela rádio da tragédia que ela própria presenciou e participou. É aqui, através de um grande-plano confiscando o seu olhar, que parece ser iniciada a mudança. É, uma vez mais, a presença relembrada do olho e da fala como integrantes do universo humano.
No entanto, será somente com aquele que tem a face deformada que a mulher predadora se constrange e expressa humanidade. Depois de com ele falar, como jamais procedera com nenhum outro capturado, condu-lo ao espaço que é negação de espaço. Pela primeira vez caminha, não à frente, mas a seu lado. E isso é significativo. Deixando-o penetrar no líquido viscoso, trá-lo de volta, após ter passado por um espelho de uma casa arruinada, onde, confrontada face a face consigo mesma, descobre-se como ser mais do que mera pele. Um espelho em tudo diferente ao espelho negro do líquido viscoso.
A partir daí é o tempo da insegurança, de se encontrar perdida no meio de uma aldeia também ela perdida, de receber e dar afecto àquele que a socorre e abriga. Por seu turno, o motard, verdadeiro senhor e dono que tudo quer controlar, vai no encalço daquele que tem a cara deformada que, em nudez absoluta, deambula procurando uma qualquer saída. Captura-o e persiste, traçando linhas e focos de luz, na perseguição à mulher outrora predadora mas eternamente misteriosa.
Na parte final do filme, após a fuga, após uma humanização conseguida e impossível de perpetuar, recolhida na floresta como abrigo, a mulher mistério é vítima da captura de um vigilante que a quer possuir e cuja fisionomia é estranhamente semelhante à do motard. Reagindo e lutando, nós descobrimos que, afinal, a mulher misteriosa é pele e que debaixo dessa pele não há nem podia ser observado o espírito, mas apenas o corpo. E isso é significativo. É, pois, por ele que as acções humanas se cumprem, sabe-se lá qual a proveniência destas. Na verdade, ela é um corpo negro cuja contextura parece ser idêntica ao viscoso líquido que submergiu todos aqueles que antes foram por si aprisionados.
Unicamente o fogo, lançado por aquele vigilante incrédulo e amedrontado, irá acabar com tudo, excepto com o mistério, como sempre tem acontecido. Elevando--se nos céus vemos o fumo das cinzas de alguém de estranha beleza que um dia ousou tornar-se humana.
S. Julião, Portalegre,
Agosto de 2014
António Júlio Rebelo