“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Um movimento perigoso

    No início de "Night Moves", de Kelly Reichardt (2013), Dena/Dakota Fanning diz ser favorável, na luta pela protecção do ambiente, às "pequenas acções", como tal dando a entender que considera como tal o acto que ela, Josh/Jesse Eisenberg e Harmon/Peter Sarsgaard preparam e levam a cabo na primeira parte do filme. 
    Nessa primeira hora a minuciosa descrição do filme dá a impressão de que se está perante uma acção inofensiva, quase uma brincadeira entre amigos. Sem privilegiar nenhum dos três embora mostrando já um potencial de simpatia por Josh, Kelly Reichardt consegue dar como banalidade quotidiana o que então se passa entre eles de forma que pelo menos não os hostiliza.
                    Night Moves
     Quando, na segunda parte do filme, se sabe que a sua acção fez uma vítima, mesmo se involuntária, já assumindo a perspectiva de Josh as coisas tornam-se negras para o trio, de tal modo que se percebe que alguém ali vai ceder e alguém ali vai ter de agir. A passagem para o ponto de vista de Josh mostra-se inteiramente justa, os magníficos exteriores da primeira parte desaparecem para dar lugar a interiores ou localidades precisas e o filme acelera na sua meia-hora final, em especial a partir do momento em que, sem que seja mostrado, sabemos que Josh se introduziu de noite em casa de Dena.
     A arte de Kelly Reichardt emerge aqui de uma forma nova, inesperada, e a conclusão é excelente porque mantém o terror de Josh. Não lhe quero chamar apenas subtileza, mas presciência. Com actores certos, em especial Jesse Eisenberg num papel bressoniano, "Night Moves" move-se insensivelmente de uma descrição monótona, embora atenta a uma natureza sensível, para uma tensão subrepticiamente surgida, muito bem desenvolvida e dominada.
                    
   Eu que tenho em especial apreço esta cineasta (ver "Perdidos", 5 de Julho de 2012) confesso-me rendido a este filme quje me faz acreditar mais que o melhor do cinema americano está, neste momento, a passar pelo seu novíssimo cinema independente, de que Kelly Reichardt faz parte. O espantoso equilíbrio criado entre a suas duas partes, as subdivisões da segunda, o tom geral que exclui qualquer tipo de julgamento em favor do dar a ver, mostrar, dão conta de um trabalho de realização mais que seguro, complexo e generoso, em que a cineasta reafirma a sua integridade como autora.
     Se fosse preciso, escolheria a sequência acima mencionada entre Josh e Dena como um dos melhores momentos de cinema a que me foi dado assistir este ano, até porque ela culmina uma linha de tensão crescente sem fechar o filme, pois segue-se-lhe Josh acossado com que ele termina.
                     Night Moves - Jesse Eisenberg 2
     Porque não acredito em coincidencias, chamo a atenção para que o título original deste filme, "Night Moves", recupera o de "Um Lance no Escuro" (1975) do honrado Arthur Penn (1922-2010). E não devo deixar de referir que Jonathan Raymond volta a estar ao lado da cineasta no argumento, a própria realizadora responde pela montagem e o nome de Todd Haynes surge como produtor executivo.  
     Escrevi acima que Josh é uma personagem bressoniana. Acrescento agora que este é o mais bressoniano filme de que o cinema americano, que já teve Paul Schrader, hoje em dia (honra a Kelly Reichardt) é capaz. Notável.                    

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