“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

A verdadeira história

     De Bruno de Almeida conhecia apenas "Em Fuga"/"On the Run" (1999) ), um filme desembaraçado, e "The Lovebirds" (2007), um filme cativante na simplicidade e concentração da sua construção epacio-temporal, que me tinha deixado muito boa impressão. Dele estreou no final do ano passado "Operação Outono" (2012), um filme comprometido com a história, muito bom e emotivo.
          Ocupando-se do assassínato do General Humberto Delgado pela PIDE em 1965, com base no livro escrito pelo seu neto e biógrafo Frederico Delgado Rosa, "Humberto Delgado - Biografia do General Sem Medo" (Lisboa: Esfera dos Livros, 2008), é um filme sério e conseguido que cumpre com dignidade e brio um dever de consciência perante os crimes cometidos pelo Estado Novo contra aqueles que se lhe opuseram. O caso de que trata foi um dos mais graves, quando não o mais grave dos crimes políticos do regime fascista contra uma das mais destacadas figuras que assumiram o combate cívico e político contra ele, com especial destaque a partir da sua candidatura às eleições presidenciais de 1958.
                   
     No dispositivo narrativo que o realizador, também co-argumentista com Frederico Delgado Rosa e John Frey, adopta assume particular importância, para além da figura do próprio Humberto Delgado/John Ventimiglia, a própria polícia política e cada um dos seus membros, com realce para os que participaram na Operação Outono que dá o título ao filme, incluindo os que trabalharam como infiltrados na sua preparação. Penso que essa foi uma decisão acertada, pois com base em composições rigorosas dos actores permite mostrar a rotina criminosa de uma organização odiosa, que foi o principal sustentáculo do regime e aqui surge como um gang criminal que além do mais foi.
      Com uma realização clara e precisa, sem qualquer concessão ao mau gosto mas também sem qualquer concessão perante os factos e a realidade que desvenda, o filme na sua primeira parte acompanha a figura carismática do General durante o seu exílio até à cilada a que foi conduzido com a sua secretária, Arajaryr Campos/Renata Batista, próximo de Badajoz, numa segunda parte, em paralelo com as diligências oficiais espanholas, segue a gestão pela PIDE do crime cometido por forma a ocultá-lo, para dedicar a sua parte final ao julgamento que teve lugar a partir de 1978, já depois do fim do regime, a partir do qual o filme é habilmente construído. Os actores, impecáveis e dos quais não quero destacar nenhum, cumprem com brilho invulgar na composição das difíceis personagens que lhes cabem, de modo a que na qualidade dos seus desempenhos possa assentar o invulgar sucesso do filme, embora muito acertadamente Bruno de Almeida recorra frequentemente a planos aproximados para deles captar nos rostos a maior expressividade e utilize a música dos Dead Comb para exponencializar a emoção, no que também deixa a sua assinatura como cineasta.                             
                   
      Fica assim cumprido para além de qualquer expectativa, sem mácula, um projecto que visa constituir-se como o verdadeiro processo de um crime brutal e de um regime medonho, homenageando o herói, corajoso, destemido até à temeridade, e condenando impiedosamente os criminosos que o assassinaram. Qualquer país que teve de lidar com uma ditadura sente o dever de homenagear as suas vítimas e aqueles que a combateram, e de expôr os seus torcionários e criminosos, e é esse dever que, para a história, "Operação Outono" de Bruno de Almeida cumpre exemplarmente.
      Em contraste com as imagens do 25 de Abril, o uso de algumas fotografias conhecidas do General e de imagens documentais de televisão a preto e branco é muito apropriado, e a elisão do crime na narrativa cronológica está muito justamente preenchida pelo final a preto e branco. Da parte de um cineasta que tanto tem trabalhado o documentário como o filme de ficção, aí fica uma obra de respeito que se impõe para a história, contra o medo e os seus fantasmas. Com a devida palavra de muito apreço e grande respeito a Iva Delgado e toda a família do General Sem Medo, que em diferentes gerações trabalhou denodadamente para que a verdade deste filme, contra todas as mistificações anteriores e posteriores ao 25 de Abril, fosse possível (sobre o Estado Novo, ver também "Memória irrecusável", de 30 de Agosto de 2012).

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