Cada vez mais um produto da cultura de massas e cada vez menos uma arte, o cinema reserva-nos ainda algumas surpresas que as reúnem, cultura de massas e arte. É o caso do novo filme do americano David Fincher, "Em Parte Incerta"/"Gone Girl" (2014), que procede a uma escalpelização da América actual semelhante à de David Lynch em "Twin Peaks", há mais de 20 anos.
Este é um filme superior porque reúne em si o olhar desapiedado sobre a actualidade e uma narrativa com ecos da narrativa do cinema clássico americano, sem as cedências de género mas com o acréscimo de lucidês sobre a sociedade actual. Poderia passar por um woman's film mas excede-o, poderia passar por um filme policial mas contorna-o para se decidir por mais um filme pessoal que sai do receituário comum de Hollywood para se situar ao nível do grande cinema.
Nick/Ben Affleck e Amy Dunne/Rosamund Pike são um casal comum, moderno dos nossos dias, que vai de New York para o Missouri onde ela subitamente desaparece, deixando que a suspeita sobre a responsabilidade do que lhe aconteceu recaia sobre o marido. A arte de David Fincher está em agarrar numa narrativa aparentemente banal pelo melhor lado, o da sua construção segundo dois pontos de vista diacrónicos, o de Nick e o do diário de Amy, passando inteiramente o odioso da situação para ele a partir do final da primeira hora.
O esclarecimento surge no final, deixando, porém, intacta a crítica do meio e dos media numa sociedade liberal em que tudo, até o impensável, é possível, sem para isso anular a individualidade de cada personagem. Baseado no romance de Gillian Flynn (edição portuguesa Bertrand, 2013), também autor do argumento, "Em Parte Incerta" define-se com a indefinição das personagens: Nick, comprometido com uma outra ligação, em permanente jogo com a imagem que dele a televisão dá; Amy voltada sobre si própria, o seu passado, em que esteve presente um seu antigo apaixonado, e o seu problemático futuro.
Se a questão do cineasta continua a ser o tempo (ver "É o tempo, estúpido!", de 29 de Janeiro de 2012, e "O tempo outra vez", de 22 de Abril de 2012) é-o agora triplamente: porque o tempo é o presente, porque a montagem é em geral curta (como é habitual nos filmes de Fincher) e por isso abrevia, e porque a construção temporal do filme duplica as mesmas datas contadas do desaparecimento de Amy de perspectivas diferentes, como em "A Rede Social"/"The Social Network" (2010) já acontecia. Mas a perspectiva de David Fincher é a de que a vida é assim, a sociedade é assim, e, embora mantendo um olhar aceradamente crítico, de que é preciso conhecê-la nos seus próprios mecanismos sociais e aprender a lidar com eles.
"Em Parte Incerta" é um filme notável e terrível a que há que estar atento, muito bem construído mas sem que a sua construção faça esquecer as personagens e a narrativa que a justificam. E com ele, depois dos dois primeiros episódios de "House of Cards" (2013) o cineasta refirme-se como um dos nomes mais importantes do actual cinema americano.
Se a questão do cineasta continua a ser o tempo (ver "É o tempo, estúpido!", de 29 de Janeiro de 2012, e "O tempo outra vez", de 22 de Abril de 2012) é-o agora triplamente: porque o tempo é o presente, porque a montagem é em geral curta (como é habitual nos filmes de Fincher) e por isso abrevia, e porque a construção temporal do filme duplica as mesmas datas contadas do desaparecimento de Amy de perspectivas diferentes, como em "A Rede Social"/"The Social Network" (2010) já acontecia. Mas a perspectiva de David Fincher é a de que a vida é assim, a sociedade é assim, e, embora mantendo um olhar aceradamente crítico, de que é preciso conhecê-la nos seus próprios mecanismos sociais e aprender a lidar com eles.
"Em Parte Incerta" é um filme notável e terrível a que há que estar atento, muito bem construído mas sem que a sua construção faça esquecer as personagens e a narrativa que a justificam. E com ele, depois dos dois primeiros episódios de "House of Cards" (2013) o cineasta refirme-se como um dos nomes mais importantes do actual cinema americano.
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