“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Fugidio e estranho

       Anterior a "Vic + Flo Viram Um Urso"/"Vic + Flo ont vu un ours" (2013), galardoado no Festival de Berlim, "Curling" (2010) é um bom filme do canadiano Denis Côté, que com ele como argumentista e realizador, como é seu hábito, se desenrola com serenidade mas também a sugestão de estranheza no interior do Québec.
                    
  Pai e filha vivem afastados do convívio social local, em especial ela, Julyvonne Sauvageau/Philomène Bilodeau, que tem 12 anos, precisa de usar óculos embora preferisse lentes de contacto e o pai, Jean-François Sauvageau/Emmanuel Bilodeau, não deixa ir à escola. Embora ensimesmado e solitário, ele trabalha e encontra por vezes alguns amigos, entre os quais também a diferença de idades é notória. Passado algum tempo, o pai acaba por deixar a filha acompanhá-lo para salões de jogos: bowling e curling.
    A serenidade paterna é subitamente interrompida por um acontecimento não totalmente mostrado nem esclarecido, mas ele esconde e mais tarde vê-se livre desse obstáculo. Depois sai, afasta-se "por problemas de adultos", deixando Julyvonne entregue a si mesma, mas vai regressar sem que se saiba exactamente o que lhe aconteceu a ela durante a sua ausência.
                    
       No intervalo entre o mostrado e o meramente sugerido Denis Côté constrói "Curling" como uma obra segura, fascinante e estranha, cujas personagens marcadas são portadoras de algo que apenas adivinhamos e permanece como misterioso. De algumas coisas não temos conhecimento completo neste filme, e nessa indecisão, nessa dúvida o filme lança raízes fortes na sua construção fílmica, até porque esses episódios não esclarecidos jogam um com o outro e com as relações entre os protagoniatas, que sinalizam.
      Denis Côté é, pois, um cineasta muito interessante, com um trabalho seguro e atento do plano, uma mise en scène muito expressiva e actores muito bons no seu underacting, um cineasta capaz de nos surpreender com filmes aparentemente banais, sem grandes motivos aparentes de interesse narrativo mas que pela sua construção nos prendem por boas razões. Por este filme fugidio e estranho, premiado em Locarno, passam coisas raras no cinema que me interessam e são muito bem dadas e tratadas em termos fílmicos.

1 comentário:

  1. A cor que funde o medo e o mistério

    O que aproxima Vic + Flo un vu un ours, premiado no Festival de Berlim de 2013, de Curling, de 2010, dois filmes do canadiano québécois Denis Côté? E o que torna, afinal, estes filmes tão tenebrosos quanto fascinantes?
    A resposta não podia ser mais directa e objectiva: o medo e o mistério, ambos entrelaçando-se e vivendo na imagem fílmica, sob o efeito de uma sombra que afecta a tonalidade do que se vê e prende o nosso olhar.
    Vic + Flo narra a história de duas mulheres presas afectivamente uma à outra e que se reencontram na casa de um familiar idoso que está doente, desligado do mundo pela fala e pelo movimento do corpo, e que muito em breve morrerá, saindo da história sem rasto, tão incógnito como quando nela entrou. Apercebemo-nos, no decurso da narrativa, que uma das mulheres, Flo (Romane Bohringer), tinha estado presa. É a prisão, pois, aquilo que nos lança, em primeira mão, o medo como presença constante e a ficar. Sem se perceber - porque é de mistério que se trata -, aparece no encalço da reclusa uma outra mulher, Marina (Marie Brassard), para um ajuste de contas fatal, sem que antes não sejam praticadas sevícias e crueldade a Flo e, por infeliz arrasto, a Vic (Pierrette Robitaille). O mistério mancha agora toda a imagem e está no passado desconhecido de todas aquelas mulheres. Seja quando uma delas, Vic, surge no início com a sua bagagem, seja quando uma outra, Marina, se apresenta a alta velocidade encapuçada ou seja, finalmente, quando uma outra, Flo, nasce do interior de uma cama em reboliço de uma relação conjugal, sem que tenhamos qualquer indício dos seus mundos antes dos seus aparecimentos. A cor sombria que se forma e não se desprende da imagem, entrecortada pela floresta cerrada ou por um campo de jogos desactivado e decadente que a escurece, reforça este mistério. E, contrariamente àquilo que diz o filósofo grego Kostas Axelos, o declínio é mesmo decadência. Assim, associado sempre a esta incógnita primordial, genética, que tinge a imagem e a inunda manifesta-se o medo, que é exactamente aquilo que é nos é mostrado na incessante hesitação e desconfiança de ambas as mulheres e revelado por Vic: tenho medo de ter medo.
    Em Curling - que não se esgota no paralelismo das duas categorias enunciadas -, também aí se encontram mais elementos recorrentes, por exemplo, um espaço de lazer, um hotel em vias de ser desactivado, bem como uma alusão à situação de prisioneira protagonizada por uma misteriosa Rosie (Johanne Haberlin), por fim, a imagem sob a ordem da penumbra a acolher tudo e todos. O medo está, sobretudo, actuante e dito na relação entre pai e filha: um pai (Emmanuel Bilodeau) que teme que a filha (Nádia Bilodeau) se contamine com as coisas mais sociais do mundo, como são a ida à escola, a educação que daí decorre e o convívio com jovens da sua idade; uma filha que teme inexplicavelmente ser autónoma e exercitar a liberdade. Chega a ser patética, por isso, a obediência; é misterioso o procurar juntar-se aos corpos gelados dos mortos que estão semienterrados na floresta coberta de neve. O medo está, pois, no mistério durável de vidas infelizes, de mortos sem explicação e num futuro humano que desliza no gelo, como no curling, e que jamais se alterará. Mesmo quando o pai ensaia uma fuga e, de modo igualmente patético se relaciona com uma mulher que cobra os serviços que pratica - sendo tão misteriosa e gerando medo como todos aqueles que habitam no lugar do filme -, nada afinal se modificará. É isso que é exposto nas imagens finais de pai e filha, observando e preparando-se eles próprios para deslizar na neve, como no curling.

    António Júlio Rebelo,
    Estremoz, Novembro de 2014

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