“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Bem visto

  A mais recente longa-metragem realizada pelo actor francês Mathieu Amalric, "O Quarto Azul"/La chambre bleue" (2014), baseada no romance homónimo de Georges Simenon (1964), proporciona uma abordagem séria de um excelente ponto de partida. A haver alguém que, depois da morte de Claude Chabrol, agarrasse nos romances de Simenon tinha o dever de saber como jogar com o mostrado e o sugerido, com o dito, o entredito e o não dito num filme.
    Tinha já muito boa impressão dos filmes realizados por Amalric (ver "Beleza e humor", de 18 de Novembro de 2012), que além de um grande actor, como é mais conhecido, é um realizador com pleno domínio dos meios do cinema, o que este filme inteiramente confirma mostrando que ele sabe o que quer e como melhor fazer. Co-argumentista com Stéphanie Cléau que, com ele como Julien Gahyde, interpreta Esther Despierre, o cineasta domina na perfeição os mecanismos da intriga e do cinema, por forma a deixar ao espectador a obrigação de fazer o seu próprio trabalho.                           
                      La Chambre Bleue : Photo Mathieu Amalric, Stéphanie Cléau
   Deste modo, com uma distribuição judiciosa em que sobressai Léa Drucker como Delphine Gahyde o filme conserva intacto o subtexto subversivo do romance de que parte, não perdendo de vista o que está em causa por entre a teia judicial envolvente que conduz a narrativa. A carga de crítica social dos romances de Simenon é, assim, num meio pequeno plenamente conservada, e o abandono da interpretação de Mathieu Amalric joga bem com a sobranceria de Stéphanie Cléau.
   Se calhar hoje em dia mesmo em França Georges Simenon é um escritor mal conhecido e pouco estimado, ele que foi um grande romancista de meados do Século XX e na época foi considerado o Balzac do romance policial do seu tempo. (Contou-me há tempos um amigo francês que a má recepção actual do escritor em França se terá ficado a dever à série televisiva "Maigret", com o comissário interpretado por Bruno Cremer, que entre 1991 e 2005 ocupou a televisão francesa.)
                      Photo        
     De seu o cineasta introduz o trabalho sobre a temporalização livre que, com adaptações, no essencial respeita o original, sem rodeios mas com grande precisão e pertinência, por forma a manter-nos permanentemente em contacto com o que de relevante acontece e aconteceu. Além disso, o tramento do espaço e a sua ocupação pelos actores são sempre justos. Quando o cinema francês envereda por estes caminhos aparentemente secundários, o que hoje em dia não é frequente, eu acompanho e gosto.
     De facto, pesem embora algumas coisas curiosas o cinema francês actual não tem grandes filmes, grandes nomes de novos cineastas. Eu por mim vou em Mathieu Amalric, que em "O Quarto Azul" faz muito bem em deixar para as palavras, os diálogos, a reconstituição da vida de uma cidade de província. Por ele e por Stéphanie Cléau.

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