“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 5 de julho de 2015

O rapto

     Poderá dizer-se para começar que os factos mereciam um filme: em Dezembro de 1977 morre Charles Chaplin na Suiça, onde é enterrado. Pouco depois, o seu caixão com o seu cadáver foi "raptado" do cemitério. Escândalo, mistério.
     Baseando-se em factos reais e públicos, o francês Xavier Beauvois, sobretudo conhecido por "Dos Homens e dos Deuses"/"Des hommes et des dieux" (2010), constrói "O Preço da Fama"/"La rançon de la gloire" (2014) com argumento, adaptação e diálogos seus, Benoît Poelvoorde como Eddy Ricaart, Rocshdy Zem como Osman Bricha (os dois "raptores"), fotografia de Caroline Champetier e música de Michel Legrand, enfim, a nata do melhor do cinema francês. 
                   Imagem do filme "La rançon de la gloire", de Xavier Beauvois
     O primeiro, e decisivo, factor de sucesso do filme é a forma como os dois actores principais encarnam os respectivos papéis, no limite entre a irrisão e o burlesco, numa continuação muito bem vista do próprio "raptado enquanto actor". Tudo se joga durante a preparação até à consumação do rapto, após o qual, e enquanto eles fogem, a música de Michel Legrand como que enlouquece. Mas a partir daí o duo mantém-se como tal no mesmo registo, cada um deles com as suas características próprias, durante o confronto com a família do "raptado" a que um dispositivo circense liderado por Rosa/Chiara Mastroianni faz um contraponto muito apropriado.
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      E a homenagem a Chaplin é tanto mais justa quanto levada para o seu próprio campo expressivo por dois grandes actores, enquanto inclui excertos de pelo menos um filme seu, que o faz aparecer vivo e novo, e a música agarra repetidamente no tema de "As Luzes da Ribalta"/"Limelight" (1952), o que torna este "O Preço de Fama" um filme sobre o próprio cinema, que com um pretexto narrativo minimal continua a ser grande cinema sem qualquer tipo de concessão que lhe seja exterior, contra o negócio baratucho e o espectáculo ocioso em que ele se transformou.
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       Mesmo que Xavier Beauvois tenha tomado liberdades em relação aos factos e personagens, o seu filme coloca-nos permanentemente do lado dos dois "raptores" como pobres diabos, seres humanos, e esse facto confere-lhe um peso próprio e uma densidade original que fazem contrapeso à fama justa do morto "raptado", muito bem representado pela sua neta Dolores Chaplin. Prolongando a candura que a presença da filha de Osman, Samira/Séli Gmach, inculca desde o início, o final em termos de melodrama e de circo torna-se perfeitamente justificado porque vem dizer que, nos seus dois "raptores", Charlot continua. Mesmo mais, que é preciso continuar a raptá-lo, como na justa imagem pós-genérico final do filme (sobre este grande homem do cinema ver "Génio de Chaplin", de 7 de Fevereiro de 2014, e "Poética de Chaplin", de 28 de Fevereiro de 2014).

         Nota 
        Acaba de sair em português a nova biografia escrita por Peter Ackroyd, "Charlie Chaplin" (Lisboa: Teodolito, 2015), que obviamente aconselho.

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