“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 7 de novembro de 2015

Os mortos estão vivos

    É com esta epígrafe que se inicia "007 Spectre"/"Spectre", o 24º James Bond film, segundo realizado por Sam Mendes (2015), um dos melhores quando mesmo não o melhor desta já longa série.
    Trata-se de um filme com referências cinematográficas e literárias sólidas e precisas, em especial de Alfred Hitchcok - "Os 39 Degraus"/"The 39 Steps" (1935) com o seu Mr. Memory, "Intriga Internacional"/North By Northwest" (1959) com os protagonistas deixados sozinhos no meio do deserto, ambos com comboios que aqui são essenciais - quanto às primeiras, com Madeleine Swann/Léa Seydoux a fazer com o "irmão" malvado de Bond, Oberhauser/Christoph Waltz, o papel de toda a memória de todos os filmes e do próprio James como personagem muito explicitamente quanto a ambas - "A Mulher Que Viveu Duas Vezes"/"Vertigo" (1958), de Hitchcock, e a "Recherche" de Proust. Embora subtil, e ainda bem, tudo isto é muito claro, sem margem para dúvidas, e não tem nada de acidental (há mais mas por enquanto chega).
                    bond girl
   Acresce (e antecede) que Sam Mendes tem andado nos últimos anos a encenar William Shakespeare em Londres (a sua última encenação foi de "King Lear") e terá percebido em James Bond o carácter shakespeariano das personagens e das narrativas, o que torna também evidente que neste "007 Spectre" estejam envolvidas questões que daí advêm: lutas entre irmãos, conflitos com o pai, memórias, disputas de poder, mortes escusas, mortos e vivos. O argumento é de John Logan, Neal Purvis e Robert Wade, os mesmos de "007: Skyfall"/"Skyfall", também de Sam Mendes (2012), mais Jez Butterworth, a partir de história dos três primeiros baseada nas personagens criadas por Ian Fleming.
    O filme inicia-se muito bem no México e a perseguição que aí decorre depois dos assassinatos cumpridos, num helicóptero, vai ser seguida por outras, em Roma de carro, depois dos Alpes austríacos, onde Bond tem a conversa decisiva com Mr. White/Jesper Christensen, num comboio no Norte de África, por fim em Londres. É ridículo apontar neste momento para a influência perniciosa dos jogos de vídeo nessas perseguições, questão há muito tratada e esclarecida em bibliografia disponível em português (1).
                    
      O conflito central do filme opõe James Bond ao grupo que, liderado pelo super-vilão que foi seu "irmão", dá o título ao filme e se dedica a "negócios" ilícitos muito vultuosos (como muitos outros) e ao terrorismo, enquanto a sua simples existência como espião está a ser extinta na remodelação dos serviços secretos de sua majestade, o que impõe uma pressão enorme sobre ele, mas também sobre o seu chefe, M/Ralph Fiennes, sobre Moneypenny/Naomie Harris e Q/Ben Whishaw.
      Daniel Craig volta a imprimir a sua marca, o seu estilo pessoal a James Bond a um nível superior, o que faz dele o seu melhor intérprete desde Sean Connery, com carisma e grandes dotes de actor muito ginasticado - em mais expandido, a sequência da luta no comboio faz lembrar "007 - Ordem para Matar"/"From Russia With Love", de Terence Young (1963), e em geral a boa forma física, muito necessária neste filme, como as mulheres bonitas e os belos carros faz parte do mito da personagem. Acompanham-no muito bem Monica Bellucci como Lucia, Léa Seydoux, Jesper Christensen mais a memória de M/Judi Dench e um pequeno rato que proporciona um dos melhores e mais reveladores "diálogos" do filme - além de Christoph Waltz, excelente como se exigia.
                     spectre2
     Há alguma coisa de estranha banalidade na perseguição final em Londres, com a queda de C/Andrew Scott também em puro Hitchcock não explorado, mas a questão das origens pessoais de James Bond, que ficara em aberto em "007: Skyfall", com a preservação de um segredo é retomada e concluída neste "007 Spectre", que torna Sam Mendes, com Terence Young, o melhor realizador a ter trabalhado nesta série. Gostei de tudo? Não, não gostei do genérico inicial (ver também "James Bond 50 anos", de 18 de Novembro de 2012).
     
      Nota
      (1) Cf. "Tudo O Que É Mau Faz Bem", de Steven Johnson (Lisboa: Lua de Papel, 2006 para a edição portuguesa).     

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