Não podemos deixar de apoiar Agatha, o elemento
discordante do trio de pre-cogs. Todos podemos sempre escolher o que
fazemos, e é precisamente isso que John diz a Lamar Burgess/Max von Sydow, uma
vez descoberto o esquema conspirativo, no final do filme: “What are you going
to do now?”, “You still have a choice, Lamar, like I did”. Só que a questão é
colocada em termos dualistas, e justamente: fazer ou não fazer, agir ou não
agir, matar ou não matar. E digo “justamente” porque não é de maneira nenhuma
inocente que o filme adopte, na sua narrativa, essa forma de colocar a questão.
Neste contexto, o monismo seria aceitar o que está previamente anunciado como
indo acontecer, isto é, aceitar que não há escolha, tanto mais quanto sabemos
pela própria Agatha que não há “relatório minoritário” alternativo naquele
caso.
Quem
me acompanhou até aqui estará a perceber porque razão entendo que este filme de
ficção científica de Steven Spielberg não tem nada de menor. Na verdade,
ele põe-nos perante uma questão central que tem movido o pensamento moderno e
pós-moderno: a do livre-arbítrio, da possibilidade de escolher, e
confronta-nos com uma sociedade em que essa escolha nos esteja retirada, porque
tudo é antecipadamente previsível e previsto. Como é dito no início do filme, a
ideia da precog parte da ideia de predetermination (“We see what
they see”). Não por acaso o filme acaba, à boa maneira spielberguiana, com a
dissolução da precrime, com a nova gravidez da mulher de John,
Lara/Kathryn Morris, e com o recolhimento dos três precogs em local
ignoto, final positivo que se impunha.
Ora isto significa, à boa maneira americana, que nada da nossa vida está antecipadamente condenado a acontecer, que não há um fado ou um destino que, à partida, nos condena a fazer ou deixar de fazer certa coisa. Bom americano além de cineasta muito dotado, Steven Spielberg não só sabe isso como nisso acredita profundamente e quer convencer-nos a acreditar, num discurso que, na actualidade, ganha um renovado sentido. O que fazemos, o que devemos fazer ou não fazer somos nós que o determinamos de acordo com as nossas convicções pessoais e o bom senso, que tantas vezes seria útil para manter as convicções dentro do socialmente aceitável. E depois, naturalmente, somos passíveis de sofrer as respectivas consequências.
(Repare-se no que Lamar diz, a certa altura: “Não escolhes aquilo em que acreditas, aquilo em que acreditas escolhe-te a ti”. Ora é porque sabemos que muitas vezes isto pode ser verdade que o bom senso se me afigura fundamental.)
Ora isto significa, à boa maneira americana, que nada da nossa vida está antecipadamente condenado a acontecer, que não há um fado ou um destino que, à partida, nos condena a fazer ou deixar de fazer certa coisa. Bom americano além de cineasta muito dotado, Steven Spielberg não só sabe isso como nisso acredita profundamente e quer convencer-nos a acreditar, num discurso que, na actualidade, ganha um renovado sentido. O que fazemos, o que devemos fazer ou não fazer somos nós que o determinamos de acordo com as nossas convicções pessoais e o bom senso, que tantas vezes seria útil para manter as convicções dentro do socialmente aceitável. E depois, naturalmente, somos passíveis de sofrer as respectivas consequências.
(Repare-se no que Lamar diz, a certa altura: “Não escolhes aquilo em que acreditas, aquilo em que acreditas escolhe-te a ti”. Ora é porque sabemos que muitas vezes isto pode ser verdade que o bom senso se me afigura fundamental.)
Como
vêem, estou para aqui a discorrer, a deixar-me embalar a propósito de um filme
de um cineasta que se calhar nem sequer é o meu cineasta americano favorito na
actualidade (o que, se acontecer, até é irrelevante neste contexto). Sei que é
isso que estou a fazer, a especular, mas se o faço é porque este filme a
isso nos convida, porque ele próprio o faz. E se o não fizermos, então somos
nós que não estamos a ver o filme todo, como o seu autor desejaria que
fizéssemos.
A
partir daqui, quereria interrogar-me sobre se todos temos, efectivamente,
sempre escolha. Quereria, pois, ir além do filme, como acho que um filme, um
bom filme, como uma boa obra de arte, sempre espera de nós. Teremos, de facto,
sempre escolha?
Se
coloco a questão, é porque penso que as nossas escolhas estão sempre
condicionadas pelo ser concreto que cada um de nós é. A escolha de John Anderton
no filme é condicionada por quem ele é, e quem ele é, como o que cada um de nós
é, é feito do presente e do passado. Se não podemos escolher independentemente
das condições concretas do presente, também não podemos escolher independentemente
da experiência concreta do passado, esquecendo-a ou fazendo de conta que ela
não existiu. Como podem verificar, nem sequer estou a ir além de “Relatório
Minoritário”, filme de Steven Spielberg. Mas é mesmo dentro desse
condicionalismo duplo, feito de presente e de passado, que quero dizer que a
nossa escolha, por escassa que pareça ou que nos queiram convencer que é, é
sempre múltipla, e não apenas dual. E se o digo é porque penso que temos sempre
várias possibilidades de escolha, mesmo se feitas da combinação de várias
escolhas dualistas, feitas em termos disjuntivos (“ou... ou ...”) e/ou em
termos consecutivos (“se isto, então aquilo”), o que, não por acaso, é o
problema que o filme anterior de Spielberg coloca à sua “Inteligência Artificial”,
criada pelo homem e por isso tão humana, ela também, na sua aparente
desumanidade.
Aliás,
e perante escolhas capitais como sobre escolhas corriqueiras, há sempre que
admitir excepções à capacidade de escolha, como sejam as situações em que, de
facto, não se pode escolher, ou aquelas em que não se sabe que se pode
escolher. Mas a este respeito seja-me permitido recordar a reflexão de Gilles
Deleuze sobre Blaise Pascal e Robert Bresson, Soren Kierkegaard e Carl Th.
Dreyer: o homem da verdadeira escolha é aquele que escolhe ecolher, porque só
ele pode escolher conscientemente porque sabe que pode escolher. Escolheu
escolher e, assim, aceitar o sacrifício e constantemente recomeçar.
Claro
que se tem que admitir também que alguém faça a escolha errada, mas essa é a
margem de liberdade do sistema, e quem o fizer sujeita-se às respectivas
consequências sociais e jurídicas. Mas a preocupação deve ser sempre a de fazer
a boa escolha, que é boa porque é certa.
Assim,
a questão de John Anderton, como a
afirmação de François Truffaut acima convocada, teria sempre a possibilidade de
ser respondida de outra forma, perguntando que outro tipo de comportamento,
que não matar, poderia ser adoptado. Mesmo contando com o passado
individual de Anderton ou de cada um, uma vez que o não matar funciona
ainda como imperativo categórico, para me manter do lado de Kant. É
sempre esse o limite do dualismo, que poderá ser evitado pelo recurso a um
monismo mais forte.
Mas,
voltando ao texto fílmico, há mais algumas coisas que não queria deixar de
dizer.
Há
um elemento de identificação impressionante neste filme, que são os olhos.
Todos sabemos que, para além das impressões digitais, todos podemos ser
identificados de uma série de outras maneiras, actualmente muito variadas pelo
recurso ao ADN. O método de identificação utilizado no filme, os olhos, surge
como perfeitamente possível e susceptível de ser praticado, com tanto mais
segurança quanto mais dificilmente falsificável. Ora o que acontece no filme é
que John, devido à situação em que se encontra e para poder passar por outro,
não ele próprio, aceita trocar de olhos, conservando os seus
dentro de um saco de plástico (chega mesmo deformar o rosto). Esta renúncia
parece muito mais radical, muito mais funda que o que poderia ser considerado
actualmente perante os elementos habituais de identificação, na medida em que
significa renunciar a algo que faz parte da essência do ser humano, tanto mais
quanto se situa no rosto e se refere ao elemento relacional fulcral, primário
do ser humano: o ver, o olhar. De alguma maneira, neste filme trocar de
olhos significa cegar, mas cegar para ver melhor, o que acaba por ser
utilizado pela mulher do protagonista para o devolver à liberdade antes do
duelo final do filme, por recurso aos olhos dele que tinham sido conservados.
Aliás, a Drª. Iris Hineman/Lois Smith, criadora da precog e dos seus
pressupostos, e que previne John da possibilidade de existência de “relatórios
minoritários” e de como eles funcionam, dissera-lhe: “Por vezes, para ver a luz
é preciso arriscar a escuridão”.
Aliás,
todo este processo é extremamente interessante e significativo no filme. É
ainda com os olhos vendados, depois da operação, que John recorda em sonho,
como visão onírica, o rapto do filho, seis anos antes. É com recurso aos
olhos próprios conservados, ou àquele que não perdeu (e esse é, desde cedo, o
motivo de uma private joke do filme para o seu protagonista, plena de
significado), que John rapta Agatha, o que se revela fundamental para ter
acesso aos pormenores do seu próprio crime anunciado e saber se há “relatório
minoritário” dele. De facto, além de ser ela quem lhe salva a vida, por duas
vezes (os balões, as moedas ao mendigo), no centro comercial, é por ela que ele vai
poder aceder também ao outro crime, a morte de Anne Lively, o que lhe vai
permitir desvendar o mistério do complot e a identidade do autor dele,
depois de o homem do FBI ter tido um vislumbre da questão que, no entanto, não
tem tempo para desenvolver, ao contrário de nós, espectadores (e aqui Spielberg
consegue ser hitchockiano de uma maneira muito hábil, uma vez que nos permite
saber coisas essenciais antes do protagonista, embora o não venha a aproveitar
especialmente do lado do suspense).
Um
outro elemento que encontra ressonância no cinema clássico americano é o facto
de o protagonista sair do sistema para provar a sua inocência e
descobrir o culpado. Esse é um elemento clássico da ficção policiária no cinema
americano, e este “Relatório Minoritário”, sem deixar de ser um filme de ficção
científica, tem também muitos e evidentes elementos de thriller policial,
com todo o seu lado de perseguição e de complot. Anote-se, por exemplo,
que os precogs se chamam Arthur (de Arthur Conan Doyle), Dashiell (de Dashiell
Hammett) e Agatha (de Agatha Christie), e que a atitude de John ganha um
sentido especial por trabalhar no contexto de um sistema que se pretende
perfeito. Aliás, o final, com a exposição do culpado, do manipulador da
conspiração, pode considerar-se que remete explicitamente para o final de “A Casa Encantada”/”Spellbound” (1945), de Alfred Hitchcock, o que, juntamente com a
concepção cinematográfica de toda essa sequência, que parte de um salão de
festas, a espantosa caracterização do vilão pelo grande actor do filme, como
por vezes acontecia nos melhores filmes do mestre do suspense (recordo James
Mason em “Intriga Internacional”/North by Northwest”, 1959), e o que já
anteriormente disse, poderá levar a considerar este como o mais hitchcockiano
dos filmes de Steven Spielberg, o que a temática dele virá confirmar - de forma
não unívoca, deve dizer-se, na medida em que este “Relatório Minoritário” faz
lembrar também o fabuloso “Relatório Confidencial”/”Confidential Report” ou
“Mr. Arkadin” (1955), de Orson Welles, o que só virá enriquecê-lo.
Também
do lado dos actores, nomeadamente do actor principal, Tom Cruise, Steven
Spielberg se aproxima do entendimento e da prática de alguns cineastas clássicos
americanos. Na verdade, não estou longe de pensar que Tom Cruise é sempre
candidato ao prémio do pior actor do ano, o que, aliás, quando lhe
acontece, como aconteceu este ano, ele aceita garbosamente, levando a namorada
na moto para receber a distinção. Simplesmente, passa-se com ele o que
acontecia com alguns actores do cinema clássico americano, isto é, empresta a
sua personalidade e o seu carisma de star a qualquer personagem que
interprete, e creio que é nesse registo que Spielberg o utiliza tanto neste
filme como em “A Guerra dos Mundos”, porque todos o conhecem e com ele qualquer
um, americano ou não americano, se identifica. Além disso, ele está longe de
ser um tipo qualquer no actual cinema americano, e ao dizê-lo quero
chamar a atenção para o facto de ter sido ele quem levou a Spielberg uma
primeira adaptação deste filme, o que mostra que é uma estrela bem
informada, e para que é ele que faz os momentos mais arriscados e
acrobáticos da sua personagem no filme, o que desde o cinema clássico americano
confere um acréscimo de credibilidade às interpretações (lembro Buster Keaton,
nomeadamente). E se o filme tem um dinamismo muito especial a ele, em grande
parte, o deve, há que reconhecê-lo, e até que aqui ele tem um trabalho muito
bom para aquilo que se poderia esperar ou recear - o que se fica a dever, sem
dúvida, a Spielberg e é confirmado pelo posterior “A Guerra dos Mundos”-, embora os restantes membros da precrime lhe
dêem boa réplica, e especialmente Colin Farrell como Danny Witwer, o homem do
FBI. Mas quanto ao grande actor deste filme estamos entendidos: ele é Max von
Sydow, além de Samantha Morton na composição, difícil mas excelente, de uma
personagem que se revela fulcral, até pelo lugar que ocupa na criação da precog
e, posteriormente, na descoberta do verdadeiro criminoso.
Claro
que, se quisermos fazer comparações com o actual cinema americano no seu
melhor, este como outros filmes de Steven Spielberg dão conta de alguma previsibilidade
quer na gestão da narrativa quer na utilização dos lugares comuns dela, o
que o seu mais recente filme, “Munique”, apesar do seu inegável brilhantismo,
confirma, com o seu ar de programa a cumprir, nomeadamente do lado da narrativa
e da elipse (i. e., da montagem), o que com “Relatório Minoritário” também
acontece. Mas se digo isto é a pensar, por exemplo, em Quentin Tarantino,
que pertence já a uma outra geração de cineastas americanos, e que mexe muito
mais na actualidade, cujos filmes se movem muito mais contra as convenções
cinematográficas hollywoodianas e cujo estilo está, efectivamente, a anos-luz
de quem quer que seja da geração de Spielberg. No entanto, devo também dizer
que nada tenho contra o carácter programático dos filmes de Spielberg ou
de outro, desde que cumpra um programa definido por ele próprio, e devo
ainda esclarecer que este filme foi discutido previamente pelo cineasta com
cientistas e especialistas do MIT, não apenas no seu conceito mas também nos
seus desenvolvimentos visuais e nas suas implicações sociais (que são muitas, e
entre as quais se conta a violação da privacidade).
(continua)
(continua)
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