“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 8 de abril de 2012

Do lado de Agatha - 2

(continuação)

        Não podemos deixar de apoiar Agatha, o elemento discordante do trio de pre-cogs. Todos podemos sempre escolher o que fazemos, e é precisamente isso que John diz a Lamar Burgess/Max von Sydow, uma vez descoberto o esquema conspirativo, no final do filme: “What are you going to do now?”, “You still have a choice, Lamar, like I did”. Só que a questão é colocada em termos dualistas, e justamente: fazer ou não fazer, agir ou não agir, matar ou não matar. E digo “justamente” porque não é de maneira nenhuma inocente que o filme adopte, na sua narrativa, essa forma de colocar a questão. Neste contexto, o monismo seria aceitar o que está previamente anunciado como indo acontecer, isto é, aceitar que não há escolha, tanto mais quanto sabemos pela própria Agatha que não há “relatório minoritário” alternativo naquele caso.
      Quem me acompanhou até aqui estará a perceber porque razão entendo que este filme de ficção científica de Steven Spielberg não tem nada de menor. Na verdade, ele põe-nos perante uma questão central que tem movido o pensamento moderno e pós-moderno: a do livre-arbítrio, da possibilidade de escolher, e confronta-nos com uma sociedade em que essa escolha nos esteja retirada, porque tudo é antecipadamente previsível e previsto. Como é dito no início do filme, a ideia da precog parte da ideia de predetermination (“We see what they see”). Não por acaso o filme acaba, à boa maneira spielberguiana, com a dissolução da precrime, com a nova gravidez da mulher de John, Lara/Kathryn Morris, e com o recolhimento dos três precogs em local ignoto, final positivo que se impunha.                               
          Ora isto significa, à boa maneira americana, que nada da nossa vida está antecipadamente condenado a acontecer, que não há um fado ou um destino que, à partida, nos condena a fazer ou deixar de fazer certa coisa. Bom americano além de cineasta muito dotado, Steven Spielberg não só sabe isso como nisso acredita profundamente e quer convencer-nos a acreditar, num discurso que, na actualidade, ganha um renovado sentido. O que fazemos, o que devemos fazer ou não fazer somos nós que o determinamos de acordo com as nossas convicções pessoais e o bom senso, que tantas vezes seria útil para manter as convicções dentro do socialmente aceitável. E depois, naturalmente, somos passíveis de sofrer as respectivas consequências.
                                                  
          (Repare-se no que Lamar diz, a certa altura: “Não escolhes aquilo em que acreditas, aquilo em que acreditas escolhe-te a ti”. Ora é porque sabemos que muitas vezes isto pode ser verdade que o bom senso se me afigura fundamental.)
          Como vêem, estou para aqui a discorrer, a deixar-me embalar a propósito de um filme de um cineasta que se calhar nem sequer é o meu cineasta americano favorito na actualidade (o que, se acontecer, até é irrelevante neste contexto). Sei que é isso que estou a fazer, a especular, mas se o faço é porque este filme a isso nos convida, porque ele próprio o faz. E se o não fizermos, então somos nós que não estamos a ver o filme todo, como o seu autor desejaria que fizéssemos.
         A partir daqui, quereria interrogar-me sobre se todos temos, efectivamente, sempre escolha. Quereria, pois, ir além do filme, como acho que um filme, um bom filme, como uma boa obra de arte, sempre espera de nós. Teremos, de facto, sempre escolha?             
         Se coloco a questão, é porque penso que as nossas escolhas estão sempre condicionadas pelo ser concreto que cada um de nós é. A escolha de John Anderton no filme é condicionada por quem ele é, e quem ele é, como o que cada um de nós é, é feito do presente e do passado. Se não podemos escolher independentemente das condições concretas do presente, também não podemos escolher independentemente da experiência concreta do passado, esquecendo-a ou fazendo de conta que ela não existiu. Como podem verificar, nem sequer estou a ir além de “Relatório Minoritário”, filme de Steven Spielberg. Mas é mesmo dentro desse condicionalismo duplo, feito de presente e de passado, que quero dizer que a nossa escolha, por escassa que pareça ou que nos queiram convencer que é, é sempre múltipla, e não apenas dual. E se o digo é porque penso que temos sempre várias possibilidades de escolha, mesmo se feitas da combinação de várias escolhas dualistas, feitas em termos disjuntivos (“ou... ou ...”) e/ou em termos consecutivos (“se isto, então aquilo”), o que, não por acaso, é o problema que o filme anterior de Spielberg coloca à sua “Inteligência Artificial”, criada pelo homem e por isso tão humana, ela também, na sua aparente desumanidade.
         Aliás, e perante escolhas capitais como sobre escolhas corriqueiras, há sempre que admitir excepções à capacidade de escolha, como sejam as situações em que, de facto, não se pode escolher, ou aquelas em que não se sabe que se pode escolher. Mas a este respeito seja-me permitido recordar a reflexão de Gilles Deleuze sobre Blaise Pascal e Robert Bresson, Soren Kierkegaard e Carl Th. Dreyer: o homem da verdadeira escolha é aquele que escolhe ecolher, porque só ele pode escolher conscientemente porque sabe que pode escolher. Escolheu escolher e, assim, aceitar o sacrifício e constantemente recomeçar.
                      
        Claro que se tem que admitir também que alguém faça a escolha errada, mas essa é a margem de liberdade do sistema, e quem o fizer sujeita-se às respectivas consequências sociais e jurídicas. Mas a preocupação deve ser sempre a de fazer a boa escolha, que é boa porque é certa.
      Assim, a questão de John  Anderton, como a afirmação de François Truffaut acima convocada, teria sempre a possibilidade de ser respondida de outra forma, perguntando que outro tipo de comportamento, que não matar, poderia ser adoptado. Mesmo contando com o passado individual de Anderton ou de cada um, uma vez que o não matar funciona ainda como imperativo categórico, para me manter do lado de Kant. É sempre esse o limite do dualismo, que poderá ser evitado pelo recurso a um monismo mais forte.            
          Mas, voltando ao texto fílmico, há mais algumas coisas que não queria deixar de dizer.
       Há um elemento de identificação impressionante neste filme, que são os olhos. Todos sabemos que, para além das impressões digitais, todos podemos ser identificados de uma série de outras maneiras, actualmente muito variadas pelo recurso ao ADN. O método de identificação utilizado no filme, os olhos, surge como perfeitamente possível e susceptível de ser praticado, com tanto mais segurança quanto mais dificilmente falsificável. Ora o que acontece no filme é que John, devido à situação em que se encontra e para poder passar por outro, não ele próprio, aceita trocar de olhos, conservando os seus dentro de um saco de plástico (chega mesmo deformar o rosto). Esta renúncia parece muito mais radical, muito mais funda que o que poderia ser considerado actualmente perante os elementos habituais de identificação, na medida em que significa renunciar a algo que faz parte da essência do ser humano, tanto mais quanto se situa no rosto e se refere ao elemento relacional fulcral, primário do ser humano: o ver, o olhar. De alguma maneira, neste filme trocar de olhos significa cegar, mas cegar para ver melhor, o que acaba por ser utilizado pela mulher do protagonista para o devolver à liberdade antes do duelo final do filme, por recurso aos olhos dele que tinham sido conservados. Aliás, a Drª. Iris Hineman/Lois Smith, criadora da precog e dos seus pressupostos, e que previne John da possibilidade de existência de “relatórios minoritários” e de como eles funcionam, dissera-lhe: “Por vezes, para ver a luz é preciso arriscar a escuridão”.
         Aliás, todo este processo é extremamente interessante e significativo no filme. É ainda com os olhos vendados, depois da operação, que John recorda em sonho, como visão onírica, o rapto do filho, seis anos antes. É com recurso aos olhos próprios conservados, ou àquele que não perdeu (e esse é, desde cedo, o motivo de uma private joke do filme para o seu protagonista, plena de significado), que John rapta Agatha, o que se revela fundamental para ter acesso aos pormenores do seu próprio crime anunciado e saber se há “relatório minoritário” dele. De facto, além de ser ela quem lhe salva a vida, por duas vezes (os balões, as moedas ao mendigo), no centro comercial, é por ela que ele vai poder aceder também ao outro crime, a morte de Anne Lively, o que lhe vai permitir desvendar o mistério do complot e a identidade do autor dele, depois de o homem do FBI ter tido um vislumbre da questão que, no entanto, não tem tempo para desenvolver, ao contrário de nós, espectadores (e aqui Spielberg consegue ser hitchockiano de uma maneira muito hábil, uma vez que nos permite saber coisas essenciais antes do protagonista, embora o não venha a aproveitar especialmente do lado do suspense).                                                                          
                                                
        Um outro elemento que encontra ressonância no cinema clássico americano é o facto de o protagonista sair do sistema para provar a sua inocência e descobrir o culpado. Esse é um elemento clássico da ficção policiária no cinema americano, e este “Relatório Minoritário”, sem deixar de ser um filme de ficção científica, tem também muitos e evidentes elementos de thriller policial, com todo o seu lado de perseguição e de complot. Anote-se, por exemplo, que os precogs se chamam Arthur (de Arthur Conan Doyle), Dashiell (de Dashiell Hammett) e Agatha (de Agatha Christie), e que a atitude de John ganha um sentido especial por trabalhar no contexto de um sistema que se pretende perfeito. Aliás, o final, com a exposição do culpado, do manipulador da conspiração, pode considerar-se que remete explicitamente para o final de “A Casa Encantada”/”Spellbound” (1945), de Alfred Hitchcock, o que, juntamente com a concepção cinematográfica de toda essa sequência, que parte de um salão de festas, a espantosa caracterização do vilão pelo grande actor do filme, como por vezes acontecia nos melhores filmes do mestre do suspense (recordo James Mason em “Intriga Internacional”/North by Northwest”, 1959), e o que já anteriormente disse, poderá levar a considerar este como o mais hitchcockiano dos filmes de Steven Spielberg, o que a temática dele virá confirmar - de forma não unívoca, deve dizer-se, na medida em que este “Relatório Minoritário” faz lembrar também o fabuloso “Relatório Confidencial”/”Confidential Report” ou “Mr. Arkadin” (1955), de Orson Welles, o que só virá enriquecê-lo. 
       Também do lado dos actores, nomeadamente do actor principal, Tom Cruise, Steven Spielberg se aproxima do entendimento e da prática de alguns cineastas clássicos americanos. Na verdade, não estou longe de pensar que Tom Cruise é sempre candidato ao prémio do pior actor do ano, o que, aliás, quando lhe acontece, como aconteceu este ano, ele aceita garbosamente, levando a namorada na moto para receber a distinção. Simplesmente, passa-se com ele o que acontecia com alguns actores do cinema clássico americano, isto é, empresta a sua personalidade e o seu carisma de star a qualquer personagem que interprete, e creio que é nesse registo que Spielberg o utiliza tanto neste filme como em “A Guerra dos Mundos”, porque todos o conhecem e com ele qualquer um, americano ou não americano, se identifica. Além disso, ele está longe de ser um tipo qualquer no actual cinema americano, e ao dizê-lo quero chamar a atenção para o facto de ter sido ele quem levou a Spielberg uma primeira adaptação deste filme, o que mostra que é uma estrela bem informada, e para que é ele que faz os momentos mais arriscados e acrobáticos da sua personagem no filme, o que desde o cinema clássico americano confere um acréscimo de credibilidade às interpretações (lembro Buster Keaton, nomeadamente). E se o filme tem um dinamismo muito especial a ele, em grande parte, o deve, há que reconhecê-lo, e até que aqui ele tem um trabalho muito bom para aquilo que se poderia esperar ou recear - o que se fica a dever, sem dúvida, a Spielberg e é confirmado pelo posterior “A Guerra dos Mundos”-,  embora os restantes membros da precrime lhe dêem boa réplica, e especialmente Colin Farrell como Danny Witwer, o homem do FBI. Mas quanto ao grande actor deste filme estamos entendidos: ele é Max von Sydow, além de Samantha Morton na composição, difícil mas excelente, de uma personagem que se revela fulcral, até pelo lugar que ocupa na criação da precog e, posteriormente, na descoberta do verdadeiro criminoso.
         Claro que, se quisermos fazer comparações com o actual cinema americano no seu melhor, este como outros filmes de Steven Spielberg dão conta de alguma previsibilidade quer na gestão da narrativa quer na utilização dos lugares comuns dela, o que o seu mais recente filme, “Munique”, apesar do seu inegável brilhantismo, confirma, com o seu ar de programa a cumprir, nomeadamente do lado da narrativa e da elipse (i. e., da montagem), o que com “Relatório Minoritário” também acontece. Mas se digo isto é a pensar, por exemplo, em Quentin Tarantino, que pertence já a uma outra geração de cineastas americanos, e que mexe muito mais na actualidade, cujos filmes se movem muito mais contra as convenções cinematográficas hollywoodianas e cujo estilo está, efectivamente, a anos-luz de quem quer que seja da geração de Spielberg. No entanto, devo também dizer que nada tenho contra o carácter programático dos filmes de Spielberg ou de outro, desde que cumpra um programa definido por ele próprio, e devo ainda esclarecer que este filme foi discutido previamente pelo cineasta com cientistas e especialistas do MIT, não apenas no seu conceito mas também nos seus desenvolvimentos visuais e nas suas implicações sociais (que são muitas, e entre as quais se conta a violação da privacidade).

(continua)

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