Quantas vezes dou por mim, à maneira de muitos, a
pensar em Steven
Spielberg como um cineasta limitado pelos temas que trata nos
seus filmes, frequentemente destinados à juventude, e pelo frequente recurso
aos efeitos digitais, hoje em dia perfeitamente banalizados. No entanto, cada
vez que assim penso ou sou levado a pensar, logo me ocorre que ele não é só
realizador mas também produtor, e que, a este nível, ele tem funcionado na sua
geração, a dos chamados movie brats dos anos 70 do século XX do cinema
americano, à semelhança do que aconteceu com Walt Disney a partir dos anos
trinta do século passado, como grande produtor de filmes destinados aos mais
novos mas apreciados por gente de qualquer idade. Só por este facto ele
merecerá sempre uma atenção muito especial da nossa parte.
Mas,
além disso, ele é também realizador, e um dos mais famosos e cotados
realizadores americanos da actualidade, com filmes efectivamente mais
direccionados para os mais novos, que normalmente acompanham a sua preferência
pela ficção científica (mas nem sempre – veja-se, por exemplo, "Sempre"/“Always”, 1989, e
“Hook”, 1991), e outros mais adultos, que se caracterizam por uma outra
gravidade temática. Quero começar por desmontar esta primeira e um tanto
generalizada maneira de equacionar o caso dele.
De
facto, podemos mesmo considerar que os filmes em que, aparentemente, Spielberg
mais se dirige a um público jovem são aqueles em que ele mais se dedica a um
trabalho experimental sobre a forma, enquanto que o seus filmes
considerados sérios são aqueles em que ele adopta uma construção fílmica
mais convencional (veja-se, por exemplo, “A Lista de
Schindler”/"Schindler's List", 1993,
“Amistad”, 1997, "O Resgate do Soldado Ryan"/“Saving Private Ryan”,
1998, "Terminal de Aeroporto"/“The Terminal”, 2004, ou
“Munique”/"Munich", 2005). Mas mesmo que
assim seja, existem momentos de grande brilhantismo formal nos segundos e
questões verdadeiramente sérias e profundas nos primeiros, como tentarei
demonstrar.
Um
primeiro ponto deve, contudo, ficar desde já assente: Steven Spielberg move-se
no contexto do cinema americano maioritário, aquele que pratica e aprecia um
cinema de espectáculo e de entretenimento, sem deixar, por isso, de deixar em
cada um dos filmes que dirige (e nos que produz também) a sua marca pessoal de
autor. Neste aspecto, ele é um dos melhores herdeiros actuais da grande
tradição do cinema americano.
Se
a divisão que comecei por traçar, entre filmes mais populares e filmes sérios,
fosse minimamente pertinente, “Relatório Minoritário”/”Minority Report” (2002) seria classificado no primeiro grupo, uma vez que se trata de um filme de
ficção científica, embora claramente “mainstream”, o que nem sequer espanta uma
vez que foi feito logo a seguir a “A. I. - Inteligência Artificial.”/”Artificial
Inteligence: A. I.” (2001), o projecto que lhe foi deixado por Stanley Kubrick. E aqui
posso começar a voltar do avesso a questão anteriormente enunciada. Há,
efectivamente, um gosto pelo filme diria que infantil e juvenil em certos, na
maioria dos filmes de ficção científica de Steven Spielberg anteriores a
“Inteligência Artificial”, se considerarmos “Encontros Imediatos do Terceiro
Grau”/"Close Encounters of the Third Kind" (1977), “E. T. - O Extra-Terrestre”/"ET: The Extra-Terrestrial" (1982), os três “Indiana Jones” (1981, 1984, 1989 - que são
filmes de aventuras) e os dois “Jurassik Park” (1993,1997) que dirigiu, gosto esse não
permite, de maneira nenhuma, que sejam considerados “filmes menores”, quer pelo
gozo que se percebe que lhe deu fazê-los, quer pelo gozo que
proporcionam. Desta maneira, só até certo ponto me desdigo.
Agora
que o cinema de Steven Spielberg, do lado da ficção científica e do imaginário,
mudou depois de 2001, o ano de “Inteligência Artigicial.”, precisamente, que é
também o ano em que decorre “2001 - Odisseia no Espaço”/”2001: A Space
Odyssey”, o justamente mítico filme de Stanley Kubrick, isso afigura-se-me
tanto mais verdade quanto mais estamos a avançar no século XXI e é confirmado
pelo mais recente “A Guerra dos Mundos”/”War of the Worlds” (2005), baseado noutra
obra mítica da ficção científica, desta feita literária, o famoso romance
homónimo de H. G. Wells.
Mas
o meu horizonte temático é “Relatório Minoritário”, e o que antecede tem aqui a
única finalidade de permitir melhor situar este filme na obra do seu autor.
Inicialmente previsto para ser feito antes de “Inteligência
Artificial”, cedeu porém lugar ao “Kubrick-film”, o que julgo que torna
pertinente associar os dois filmes sob a forma de díptico. Assim, enquanto um
trata das possibilidades e dos limites da inteligência artificial, o outro
trata das aparentes possibilidades e dos limites da antecipação, da previsão do
futuro. Ora ao ceder a este último tema, Spielberg arrica-se a ser tomado do
lado da sumamente mal afamado “bola-de-cristal”, o que ele sabe, e por isso não
prescinde de um ponto de partida sólido do lado da literatura de ficção
científica, no caso o conto de Philip K. Dick, um dos mais conceituados autores
americanos do género (que já estivera na origem de "Blade Runner - Perigo Iminenete"/“Blade Runner”, de Ridley
Scott, um dos melhores filmes de ficção científica de sempre, datado de 1982).
Desse modo, um terreno particularmente escorregadio ganha uma credibilidade
narrativa, precisamente o que o cineasta procurava (digo e repito
“credibilidade narrativa” e não “verosimilhança”, que não é o que está em causa
na ficção científica e é, aliás, uma palavra com que já Alfred Hitchcock
embirrava especialmente pelas melhores razões cinematográficas).
Poderemos considerar que o lado de ficção
científica do filme, o seu género, provém de Philip K. Dick, enquanto
que o lado de saga familiar dele é típico do universo spielberguiano.
Por seu lado, os efeitos especiais utilizados não são meramente fruto da
tecnologia digital actual, dada a sua sofisticação, e nem sequer é do lado da
credibilidade que devem ser avaliados, como o mais recente “A Guerra dos
Mundos” sobejamente demonstra. Aliás, uma parte central desses efeitos gira, em
“Relatório Minoritário”, precisamente à volta das imagens antecipadas pelos
três precogs de crimes que vão ser cometidos, o que lhes confere, só por
si, um carácter extremamente cinematográfico. São como que imagens filmadas do
futuro pelos precogs e, a esse título, como que visões deles. E
tenha-se, também, presente que no filme surgem igualmente imagens filmadas do
passado, essas provenientes do arquivo do protagonista, e que assumem uma forma
holográfica..
Ora
o projecto da Precrime visa antecipar crimes que vão ser cometidos por
forma a impedi-los, mediante a prévia detenção dos criminosos por vir. A ideia,
só por si, é extremamente polémica, e isso mesmo se torna claro no final do
filme. Mas durante este somos levados a aceitá-la na sua aparente bondade, como
a concretização do sonho de prevenção do crime de qualquer poder constituído,
até porque o protagonista, John Anderton/Tom Cruise, faz parte da divisão da precrime
e com ele somos levados a identificar-nos, como normalmente acontece no cinema
em geral e nos filmes de Steven Spielberg em particular.
Aliás,
na narrativa fílmica o problema da legitimidade da precog e do trabalho
feito sobre ela nem sequer se levantaria não se dera o caso de o protagonista
vir a ser identificado como autor de um futuro crime a uma distância de 36
horas. A partir desse momento, poderia pensar-se estarmos perante mais um banal
filme de suspense, neste sentido banal e pós-hitchcockiano
(embora sempre griffithiano) que a expressão assumiu de saber se o herói vai ou
não chegar a tempo de evitar um determinado acontecimento anunciado. Só que a
narrativa torna o momento desse crime no momento central do filme mas
não o seu momento final.
Sabemos
antes desse momento que existe a possibilidade de, ao antecipar um crime, um
dos elementos da precog abrir um desenlace alternativo, denominado então
“relatório minoritário”. O seu autor habitual, Agatha/Samantha Morton,
acompanha John Anderton até esse quarto de hotel em que ela antecipou que o
crime dele irá ter lugar no momento previsto. E nesse preciso momento em que
ele é confrontado com a sua vítima anunciada vimos a saber com ele que se trata
do autor do rapto e (supostamente) morte
do filho de John, Sean, precisamente a única pessoa no mundo que ele não
poderia deixar de querer matar. Nas explicações então trocadas (depois da
primeira decisão de John, a instâncias de Agatha, de não matar) perdem-se uns
escassos segundos relativamente ao tempo previsto da ocorrência do crime, mas
pela sua vítima o protagonista consegue saber, entretanto, alguns pormenores
que lhe virão a ser de grande utilidade no futuro.
Se este momento é central no filme é
porque é então que Agatha diz a John, depois de o ter tentado, em vão,
convencer a fugir, que ele pode escolher. “You can choose”, diz-lhe ela, embora
ela própria, melhor do que ninguém, saiba que, naquele caso, não há “relatório
minoritário” que abra para um comportamento alternativo, como ela própria disse,
e nós a ouvimos dizer, ao protagonista. Mesmo assim, ela diz-lhe que ele pode
escolher. E diz-lho repetidamente: “You have a choice”,
“You still have a choice”, “You can choose”. E aqui, precisamente, reside quanto a mim o cerne do filme.
Tratando
as coisas pelos nomes, o que aqui está em causa é aquilo a que, pelo menos
desde Kant, chamamos o livre-arbítrio, do qual todos nós somos supostos
ser possuidores por forma a determinarmos as nossas acções de acordo com as
nossas escolhas conscientes. Esta faculdade, a posse desta faculdade é mesmo um
pressuposto fundamental da culpa e da possível responsabilização das pessoas
pelos seus actos condenáveis. Qualquer sistema penal moderno parte desse
pressuposto. Ora o que “Relatório Minoritário” nos vem dizer é que, em 2054,
ano em que decorre a acção do filme, em Washington D. C.
é possível antecipar os crimes que, seguramente, vão ser cometidos, por forma a
que possam ser evitados. Ocorre, então, perguntar, se um tal dispositivo
ficcional não vem precisamente quebrar o livre-arbítrio das pessoas,
embora ao serviço da melhor das causas: evitar que matem.
A
questão pode parecer abstracta, inconsistente. Virá, por isso, a propósito,
citar uma afirmação de François Truffaut em que ele dizia que qualquer um de nós
é capaz de cometer um crime, é inclusivamente capaz de matar, caso se encontre
numa situação que a isso o leve (cito de memória). Se julgo que tal afirmação é
pertinente neste contexto é porque é precisamente disso que trata este filme.
John Anderton é confrontado, no momento e local do seu crime anunciado, com a
única pessoa no mundo que poderia querer matar. Mas mesmo nessas
circunstâncias, Agatha diz-lhe que ele pode escolher.
(continua)
(continua)
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