“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 8 de abril de 2012

Do lado de Agatha - 1


      Quantas vezes dou por mim, à maneira de muitos, a pensar em Steven Spielberg como um cineasta limitado pelos temas que trata nos seus filmes, frequentemente destinados à juventude, e pelo frequente recurso aos efeitos digitais, hoje em dia perfeitamente banalizados. No entanto, cada vez que assim penso ou sou levado a pensar, logo me ocorre que ele não é só realizador mas também produtor, e que, a este nível, ele tem funcionado na sua geração, a dos chamados movie brats dos anos 70 do século XX do cinema americano, à semelhança do que aconteceu com Walt Disney a partir dos anos trinta do século passado, como grande produtor de filmes destinados aos mais novos mas apreciados por gente de qualquer idade. Só por este facto ele merecerá sempre uma atenção muito especial da nossa parte.
       Mas, além disso, ele é também realizador, e um dos mais famosos e cotados realizadores americanos da actualidade, com filmes efectivamente mais direccionados para os mais novos, que normalmente acompanham a sua preferência pela ficção científica (mas nem sempre – veja-se, por exemplo, "Sempre"/“Always”, 1989, e “Hook”, 1991), e outros mais adultos, que se caracterizam por uma outra gravidade temática. Quero começar por desmontar esta primeira e um tanto generalizada maneira de equacionar o caso dele.
        De facto, podemos mesmo considerar que os filmes em que, aparentemente, Spielberg mais se dirige a um público jovem são aqueles em que ele mais se dedica a um trabalho experimental sobre a forma, enquanto que o seus filmes considerados sérios são aqueles em que ele adopta uma construção fílmica mais convencional (veja-se, por exemplo, “A Lista de Schindler”/"Schindler's List", 1993, “Amistad”, 1997, "O Resgate do Soldado Ryan"/“Saving Private Ryan”, 1998, "Terminal de Aeroporto"/“The Terminal”, 2004, ou “Munique”/"Munich", 2005). Mas mesmo que assim seja, existem momentos de grande brilhantismo formal nos segundos e questões verdadeiramente sérias e profundas nos primeiros, como tentarei demonstrar.
                            

            Um primeiro ponto deve, contudo, ficar desde já assente: Steven Spielberg move-se no contexto do cinema americano maioritário, aquele que pratica e aprecia um cinema de espectáculo e de entretenimento, sem deixar, por isso, de deixar em cada um dos filmes que dirige (e nos que produz também) a sua marca pessoal de autor. Neste aspecto, ele é um dos melhores herdeiros actuais da grande tradição do cinema americano.
            Se a divisão que comecei por traçar, entre filmes mais populares e filmes sérios, fosse minimamente pertinente, “Relatório Minoritário”/”Minority Report” (2002) seria classificado no primeiro grupo, uma vez que se trata de um filme de ficção científica, embora claramente “mainstream”, o que nem sequer espanta uma vez que foi feito logo a seguir a “A. I. - Inteligência Artificial.”/”Artificial Inteligence: A. I.” (2001), o projecto que lhe foi deixado por Stanley Kubrick. E aqui posso começar a voltar do avesso a questão anteriormente enunciada. Há, efectivamente, um gosto pelo filme diria que infantil e juvenil em certos, na maioria dos filmes de ficção científica de Steven Spielberg anteriores a “Inteligência Artificial”, se considerarmos “Encontros Imediatos do Terceiro Grau”/"Close Encounters of the Third Kind" (1977), “E. T. - O Extra-Terrestre”/"ET: The Extra-Terrestrial" (1982), os três “Indiana Jones” (1981, 1984, 1989 - que são filmes de aventuras) e os dois “Jurassik Park” (1993,1997) que dirigiu, gosto esse não permite, de maneira nenhuma, que sejam considerados “filmes menores”, quer pelo gozo que se percebe que lhe deu fazê-los, quer pelo gozo que proporcionam. Desta maneira, só até certo ponto me desdigo.                      
                      
          Agora que o cinema de Steven Spielberg, do lado da ficção científica e do imaginário, mudou depois de 2001, o ano de “Inteligência Artigicial.”, precisamente, que é também o ano em que decorre “2001 - Odisseia no Espaço”/”2001: A Space Odyssey”, o justamente mítico filme de Stanley Kubrick, isso afigura-se-me tanto mais verdade quanto mais estamos a avançar no século XXI e é confirmado pelo mais recente “A Guerra dos Mundos”/”War of the Worlds” (2005), baseado noutra obra mítica da ficção científica, desta feita literária, o famoso romance homónimo de H. G. Wells.
          Mas o meu horizonte temático é “Relatório Minoritário”, e o que antecede tem aqui a única finalidade de permitir melhor situar este filme na obra do seu autor.
         Inicialmente previsto para ser feito antes de “Inteligência Artificial”, cedeu porém lugar ao “Kubrick-film”, o que julgo que torna pertinente associar os dois filmes sob a forma de díptico. Assim, enquanto um trata das possibilidades e dos limites da inteligência artificial, o outro trata das aparentes possibilidades e dos limites da antecipação, da previsão do futuro. Ora ao ceder a este último tema, Spielberg arrica-se a ser tomado do lado da sumamente mal afamado “bola-de-cristal”, o que ele sabe, e por isso não prescinde de um ponto de partida sólido do lado da literatura de ficção científica, no caso o conto de Philip K. Dick, um dos mais conceituados autores americanos do género (que já estivera na origem de "Blade Runner - Perigo Iminenete"/“Blade Runner”, de Ridley Scott, um dos melhores filmes de ficção científica de sempre, datado de 1982). Desse modo, um terreno particularmente escorregadio ganha uma credibilidade narrativa, precisamente o que o cineasta procurava (digo e repito “credibilidade narrativa” e não “verosimilhança”, que não é o que está em causa na ficção científica e é, aliás, uma palavra com que já Alfred Hitchcock embirrava especialmente pelas melhores razões cinematográficas).
 
        Poderemos considerar que o lado de ficção científica do filme, o seu género, provém de Philip K. Dick, enquanto que o lado de saga familiar dele é típico do universo spielberguiano. Por seu lado, os efeitos especiais utilizados não são meramente fruto da tecnologia digital actual, dada a sua sofisticação, e nem sequer é do lado da credibilidade que devem ser avaliados, como o mais recente “A Guerra dos Mundos” sobejamente demonstra. Aliás, uma parte central desses efeitos gira, em “Relatório Minoritário”, precisamente à volta das imagens antecipadas pelos três precogs de crimes que vão ser cometidos, o que lhes confere, só por si, um carácter extremamente cinematográfico. São como que imagens filmadas do futuro pelos precogs e, a esse título, como que visões deles. E tenha-se, também, presente que no filme surgem igualmente imagens filmadas do passado, essas provenientes do arquivo do protagonista, e que assumem uma forma holográfica..
     Ora o projecto da Precrime visa antecipar crimes que vão ser cometidos por forma a impedi-los, mediante a prévia detenção dos criminosos por vir. A ideia, só por si, é extremamente polémica, e isso mesmo se torna claro no final do filme. Mas durante este somos levados a aceitá-la na sua aparente bondade, como a concretização do sonho de prevenção do crime de qualquer poder constituído, até porque o protagonista, John Anderton/Tom Cruise, faz parte da divisão da precrime e com ele somos levados a identificar-nos, como normalmente acontece no cinema em geral e nos filmes de Steven Spielberg em particular.
         Aliás, na narrativa fílmica o problema da legitimidade da precog e do trabalho feito sobre ela nem sequer se levantaria não se dera o caso de o protagonista vir a ser identificado como autor de um futuro crime a uma distância de 36 horas. A partir desse momento, poderia pensar-se estarmos perante mais um banal filme de suspense, neste sentido banal e pós-hitchcockiano (embora sempre griffithiano) que a expressão assumiu de saber se o herói vai ou não chegar a tempo de evitar um determinado acontecimento anunciado. Só que a narrativa torna o momento desse crime no momento central do filme mas não o seu momento final.
                                   
           Sabemos antes desse momento que existe a possibilidade de, ao antecipar um crime, um dos elementos da precog abrir um desenlace alternativo, denominado então “relatório minoritário”. O seu autor habitual, Agatha/Samantha Morton, acompanha John Anderton até esse quarto de hotel em que ela antecipou que o crime dele irá ter lugar no momento previsto. E nesse preciso momento em que ele é confrontado com a sua vítima anunciada vimos a saber com ele que se trata do autor do rapto e  (supostamente) morte do filho de John, Sean, precisamente a única pessoa no mundo que ele não poderia deixar de querer matar. Nas explicações então trocadas (depois da primeira decisão de John, a instâncias de Agatha, de não matar) perdem-se uns escassos segundos relativamente ao tempo previsto da ocorrência do crime, mas pela sua vítima o protagonista consegue saber, entretanto, alguns pormenores que lhe virão a ser de grande utilidade no futuro.
Se este momento é central no filme é porque é então que Agatha diz a John, depois de o ter tentado, em vão, convencer a fugir, que ele pode escolher. “You can choose”, diz-lhe ela, embora ela própria, melhor do que ninguém, saiba que, naquele caso, não há “relatório minoritário” que abra para um comportamento alternativo, como ela própria disse, e nós a ouvimos dizer, ao protagonista. Mesmo assim, ela diz-lhe que ele pode escolher. E diz-lho repetidamente: “You have a choice”, “You still have a choice”, “You can choose”. E aqui, precisamente, reside quanto a mim o cerne do filme.
          Tratando as coisas pelos nomes, o que aqui está em causa é aquilo a que, pelo menos desde Kant, chamamos o livre-arbítrio, do qual todos nós somos supostos ser possuidores por forma a determinarmos as nossas acções de acordo com as nossas escolhas conscientes. Esta faculdade, a posse desta faculdade é mesmo um pressuposto fundamental da culpa e da possível responsabilização das pessoas pelos seus actos condenáveis. Qualquer sistema penal moderno parte desse pressuposto. Ora o que “Relatório Minoritário” nos vem dizer é que, em 2054, ano em que decorre a acção do filme, em Washington D. C. é possível antecipar os crimes que, seguramente, vão ser cometidos, por forma a que possam ser evitados. Ocorre, então, perguntar, se um tal dispositivo ficcional não vem precisamente quebrar o livre-arbítrio das pessoas, embora ao serviço da melhor das causas: evitar que matem.                        
          A questão pode parecer abstracta, inconsistente. Virá, por isso, a propósito, citar uma afirmação de François Truffaut em que ele dizia que qualquer um de nós é capaz de cometer um crime, é inclusivamente capaz de matar, caso se encontre numa situação que a isso o leve (cito de memória). Se julgo que tal afirmação é pertinente neste contexto é porque é precisamente disso que trata este filme. John Anderton é confrontado, no momento e local do seu crime anunciado, com a única pessoa no mundo que poderia querer matar. Mas mesmo nessas circunstâncias, Agatha diz-lhe que ele pode escolher.

(continua)

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