Sob a aparência
do inquérito ao passado de que é encarregado o jornalista em “Millennium 1 – Os
Homens Que Odeiam as Mulheres”/”The Girl with the Dragoon Tattoo”, de David
Fincher (2011), o que volta a estar em causa é o presente.
De facto, nesta adaptação americana
do primeiro volume da trilogia do sueco Stig Larsson (1954-2004), famoso depois
da sua morte – à semelhança do que aconteceu com W. G. Sebald e Roberto Bolaño
-, Mikael Blomkvist/Daniel Craig parte à procura do autor de um crime que é
suposto ter ocorrido em 1966 e ao fim de um prolongado e difícil trabalho, para
que é decisiva a ajuda de Lisbeth Salander/Rooney Mara, não só acaba por
descobrir o que aconteceu como vem a saber – vem ela a descobrir – as
ramificações de um lucrativo negócio que ele começara por denunciar em vão.
O livro já tinha tido uma adaptação
cinematográfica, feita na Suécia pelo dinamarquês Niels Arden Oplev em 2009,
mas neste filme de Fincher é muito interessante o ar de miúdo perdido que o James
Bond de serviço tem, a maior parte do tempo à deriva, ao sabor dos contactos
que estabelece e dos acontecimentos que desencadeia, do que acaba por ser
retirado e salvo pela sua inquisitiva e muito inteligente ajudante. É evidente
que o que eles procuram descobrir se situa no passado de uma família da grande
indústria sueca, os Vanger, de que o patriarca, Henrik/Christopher Plummer,
encomenda a Blomkvist o inquérito, e que as alusões ao passado da família,
nomeadamente no tempo da II Guerra Mundial, são muito interessantes por permitirem
estabelecer as ligações necessárias.
Mas se durante a maior parte do
tempo o jornalista parece, de facto, um miúdo perdido na investigação do
passado da família, cujos membros parecem entreter-se a empurrá-lo de uns
para os outros, é Lisbeth quem tem a iniciativa e toma a direcção do inquérito em momentos decisivos,
para dizer-lhe o que fazer e como concluir, em vez de ser ele a servir-se da ajuda
dela. Esse lado do filme, muito bem dado com os decisivos contributos de um Daniel
Craig em estado de inteira disponibilidade e de uma excelente Rooney Mara, que
consegue transmitir todas as nuances
de Lisbeth, vai ocupar a maior parte do tempo, que vai aparecer, assim, um pouco
como distracção e tempo perdido, não se dera o caso de permitir que, no final,
venha a ser descoberto o que de facto aconteceu – e não aconteceu – e por culpa
de quem. E vai ser ela quem, depois disso e em conclusão, vai mexer-se
para chegar a quem e ao que ele não pudera chegar, apesar do prometido apoio de
Henrik, oferecido como contrapartida do seu trabalho.
Foi estabelecida a relação entre
o(s) crime(s) deste “Millennium 1 – Os Homens Que Odeiam as Mulheres” e os dos
seus anteriores “7 Pecados Mortais”/Seven” (1995), pelo lado das citações
bíblicas, e “Zodiac” (2007), pelo lado da reabertura de um inquérito sobre um serial
killer, mas como não ver que já nesses filmes David Fincher, ao aludir a
crimes do passado, sobretudo no segundo caso lançava um olhar crítico e céptico
sobre o presente? Como não perceber que ao procurar no passado, ao fazer
história, se começa e acaba a falar do tempo a partir do qual se olha, se
escreve? De facto, é depois de um necessário percurso sobre o passado que
chegamos onde queríamos chegar no presente, na actualidade, a nível de
descoberta e de compreensão do que somos e do que nos rodeia, como acontece,
aliás sem que ele o saiba ou premedite, com o Mikael Blomkvist deste filme.
Porque é no presente que está a chave do passado, que é preciso conhecer e por sua vez
explica o presente, que interessa por si próprio: quando olhamos para o passado também o passado que nos olha, e em qualquer caso o olhar do outro é fundamental para compreendermos, para descobrirmos - mesmo para nos compreendermos a nós próprios. Como escreve muito lucidamente João Barrento, é preciso "não tanto perguntar para onde vamos, como sobretudo tentar entender onde estamos" (1).
Torna-se, para isso, necessário que
Lisbeth cumpra, com os seus métodos de hacker, a parte decisiva que ele não pode nem sabe cumprir, movido como
é por objectivos próximos e claros, como é próprio de um jornalista, mesmo se
muito apto na sua profissão. Para ver longe e provocar a descoberta é preciso
alguém com o passado difícil e escuso que ela tem, com a energia e o espírito de
iniciativa que ele está a perder, rumo a um conformismo social que é próprio e
que a vai deixar para trás, na encruzilhada dos amores perdidos, mais uma a
juntar-se a outras encruzilhadas anteriores, que como elas, que lhe ensinaram
que a vida é para sofrer, ela saberá resolver.
Haverá ainda a referir que uma certa
velocidade, uma certa rapidez deste filme vem do anterior “A Rede Social”/”The
Social Network” (2010), em que David Fincher
dá uma lição de cinema e de visão da actualidade com grande engenho fílmico e
narrativo, o que aqui prossegue com uma estrutura narrativa mais simples e
experimentada mas conservando o interesse, o encanto e o lado perturbador do
seu ponto de partida literário.
Se me perguntarem qual dos dois
filmes, o sueco ou o americano, é melhor neste caso, a minha resposta é que são
muito diferentes - é mesmo essa a riqueza do cinema, adoptar o mesmo ponto de partida para chegar a resultados diferentes - e que o melhor é ver os dois.
Nota
(1) Cf. João Barrento, in " O mundo está cheio de deuses - Crise e crítica do contemporâneo", Assírio & Alvim, Lisboa, pág. 62.
Nota
(1) Cf. João Barrento, in " O mundo está cheio de deuses - Crise e crítica do contemporâneo", Assírio & Alvim, Lisboa, pág. 62.
Sem comentários:
Enviar um comentário