Contudo, também sobre esta questão devo ser
perfeitamente claro. O cinema precisa sempre de cineastas como Steven
Spielberg, que podem ser facilmente acompanhados por qualquer tipo de
espectadores, que são acessíveis e gratificantes. Aliás, na geração dos movie brats dos anos 70 do século XX, de que
faz parte juntamente com Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Brian De Palma,
Michael Cimino, John Carpenter, nomeadamente, ele foi sempre alguém com uma
percepção clara de que alguma coisa de essencial havia no cinema anterior a ele
que podia e devia ser aproveitada, quanto mais não fosse um estilo de trabalho
cinematográfico que estabelece laços de cumplicidade imediatos com qualquer
público. Ora isto, que nele é instintivo e lhe tem permitido alcançar sucessos
que se contam entre os maiores da história do cinema em termos de resultados de
bilheteira, está de certa maneira fora dos parâmetros em que se move uma
geração mais nova, como a de Quentin Tarantino, que tenta criar um novo público
para um novo tipo de cinema, indo para isso muito mais longe do que geração de
Spielberg estava disposta a ir.
Dito
isto, convém esclarecer que não estou a dizer mal nem de “Relatório
Minoritário” nem de Steven Spielberg. Se comecei por tentar situar o filme na
obra do cineasta, limito-me, neste momento, a tentar situar o cineasta na
actualidade do cinema. E se considerar tendencialmente previsível o actual
trabalho cinematográfico de Spielberg for entendido, como pretendo, como
reconhecer-lhe um lugar de novo clássico do cinema americano, verão que
ele até concordará e poderão, ao lê-lo, nem sequer ficar chocados. É que o
melhor do cinema comercial americano continua a passar por aqui e a passar por
ele, sem grandes (embora algumas) surpresas, é certo, mas também sem grandes
decepções.
Que os filmes dele com carácter mais
grave manifestam uma grande inteligência narrativa e de construção fílmica é
confirmado quer por "Apanha-me Se Puderes"/“Catch Me If You Can” (2002) quer por “Terminal de Aeroporto“, apesar mas
também por causa do tom aparentemente mais ligeiro que lhes imprime, para além
de “Munique”, de uma forma que vem corroborar este “Relatório Minoritário”,
situado já, ele também, tal como “Inteligência Artificial”, do lado dessa
gravidade temática, como procurei demonstrar.
Afinal, como tanto ele, Steven
Spielberg, como George Lucas, seu contemporâneo e seu cúmplice (e a IL&M
está na origem dos efeitos visuais digitais deste filme), bem sabem, o cinema
americano continua não só a passar por eles como a depender deles, e pelo facto
e pela maneira como o gerem só podemos estar-lhes gratos. Com efeitos
especiais, narrativas exemplares, ficção científica e tudo, até porque os
efeitos gerados por computador representaram um importante passo no cinema, que
eles têm sabido aproveitar para o melhor (enquanto outros nem por isso). E
aproveito mesmo para chamar a atenção para os muito elaborados e, por vezes,
complexos efeitos visuais deste filme, nomeadamente no que respeita à cidade do
futuro, às vias de comunicação e aos veículos - efeitos esses que chegam ao
ponto de situar a câmara num cenário digital -, bem como para os figurinos,
adereços e cenários, interiores e exteriores.
No
seu todo, aliás, o filme manifesta clara influência do universo da banda
desenhada, o que faz parte do estilo do cineasta, pelo menos quando trabalha no
género ficção científica e, consequentemente, se apropria do imaginário
respectivo. E manifesta também o entendimento que o cineasta tem da sua função
como realizador, na medida em que temos, ao longo de “Relatório Minoritário”
como ao longo dos seus outros filmes, a permanente noção de quem detém o controlo
das operações. Se a isto juntarmos a excelente fotografia de Janusz Kaminski,
que vai ao ponto de tratar os momentos mais negros do filme ao estilo do
filme negro americano, e a espantosa partitura de John Williams, que
segue a acção do filme até às suas mais pequenas nuances, poderemos
compreender a que ponto chega o estatuto deste filme como obra invulgar.
E
se Steven Spielberg tem um indiscutível lugar, à parte e destacado, no cinema
actual, isso fica a dever-se à seriedade, que não impede o tom lúdico, com que
trata os mais diversos assuntos, da ficção científica à História, passando pela
actualidade mais candente, e ao brio formal com que o faz, arriscando não só no
futuro como também no passado, e tirando lições do passado para o futuro e para
o presente (e do futuro para o presente, sem dúvida), o que é bom ter presente
e valorizar devidamente. Aliás, diga-se que o cineasta deve ser entendido como
autor cinematográfico, embora se mova no contexto do cinema comercial (o que
nem sequer é nada de novo), porque possuidor de uma estética, de um estilo
próprio, para além de uma temática pessoal – e neste mesmo sentido devem ser
entendidas as alusões que fiz atrás a alguns dos maiores nomes do cinema
clássico americano. Além disso, o seu imaginário fulgurante, que tem marcado
mais de uma geração, só por si bastaria para demonstrar, de forma exuberante,
que ele é um verdadeiro criador cinematográfico, hoje em dia à altura de alguns
dos melhores nomes do cinema clássico. E se se considerar o inelutável sentido
político dos seus filmes, em especial desde o ano, também fatídico, de 2001, e
que quem, antes dele, “pegou” em “A Guerra dos Mundos” (além de Byron Haskin,
em 1953, para um filme que fez época e vale a pena conhecer ainda hoje) para
uma, aliás célebre, emissão radiofónica, foi Orson Welles, ver-se-á que não
estou a exagerar (embora também não esteja a sugerir comparações, que seriam
descabidas). Faltar-lhe-á, se faltar, criar grandes personagens femininas
autónomas, fora das determinações funcionais em que é perito, o que será, pelo
menos, uma maneira de deixar de ser considerado por alguns como “o eterno
adolescente, apesar de muito dotado”.
Para
terminar, quero voltar à questão da escolha, do livre-arbítrio, que
considero fundamental não só em “Relatório Minoritário” como na generalidade da
obra do autor. Ela é uma questão central do nosso tempo, como questão central a
recebemos da modernidade apesar da relativização a que a tem sujeitado uma
certa pós-modernidade. De facto, para o exercício de uma escolha consciente, a
qualquer nível, é necessário dispor de informação, de boa informação, para que
se possa fazer a melhor escolha. Mas para que a escolha seja a melhor é preciso
também educação, a todos os níveis, já que não se pode escolher senão aquilo
que se conhece e aquilo em que podemos reconhecer-nos. Ora se a arte, em geral,
e o cinema, em especial, nos cria ao moldar os nossos gostos e ao oferecer-nos,
no caso do cinema, paradigmas de comportamento que vão moldar o nosso
imaginário, convém que estejamos devidamente inteirados sobre o real
significado estético, e não meramente sociológico de cada filme, sob pena de
podermos tomar por grande arte aquilo que não passe, afinal, de um filme grande
e vistoso. Com o que não estou, obviamente, a minimizar o impacto sociológico
do cinema, sempre crescente mesmo quando se fala em diminuição do número de
espectadores, sobretudo se não o dissociarmos da indústria audiovisual de que
desde há muito é inseparável quer a nível de produção quer a nível de
distribuição – embora também não se confunda com o chamado audiovisual,
em que alguns o pretendem diluir -, mas apenas a chamar a atenção para a
necessidade de educar também o gosto cinematográfico e artístico como parte da
formação integral do ser humano.
Isto
porque, a meu ver, a sociedade do conhecimento, como as nossas actuais
sociedades se pretendem, em especial num mundo globalizado como o nosso, não se
pode dar ao luxo de ignorar a arte, as artes, diria mesmo sobretudo uma arte
impura como o cinema. Nem as outras artes, puras elas e muito mais antigas que
ele, o devem minimizar ou fingir que o ignoram, até porque o cinema, apesar de
arte por si mesmo, reconhece aquilo que a elas lhes deve (e quando falo nas
artes estou a incluir também, obviamente, as artes da narrativa).
Por
outras palavras: se podemos sempre escolher dentro dos dados da nossa própria
experiência, convém que essa experiência, de que a educação faz parte
integrante, seja tão grande e diversificada quanto possível. Ora isso depende
de nós, assim nós o saibamos escolher para aqueles que educamos e formamos.
E
seja-me permitido, ainda, acrescentar, que a escolha bem informada sobre o
cinema passará sempre por saber distinguir entre Orson Welles e H. G. Wells,
entre Jean Renoir e Jean-Luc Godard, entre Steven Spielberg e Steven
Soderbergh, e também, naturalmente, entre Sergei Eisenstein e Albert Einstein,
o que nem sequer digo por acaso ou para ironizar, mas como fruto dos meus já
muitos anos de ensino do cinema e para manter os pés bem assentes na terra.
Isto porque, como em
tudo, também no cinema só se pode escolher entre o possível, o existente.
Abril 2007
Abril 2007
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