“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 8 de abril de 2012

Do lado de Agatha - 3

(continuação)

        Contudo, também sobre esta questão devo ser perfeitamente claro. O cinema precisa sempre de cineastas como Steven Spielberg, que podem ser facilmente acompanhados por qualquer tipo de espectadores, que são acessíveis e gratificantes. Aliás, na geração dos movie brats dos anos 70 do século XX, de que faz parte juntamente com Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Brian De Palma, Michael Cimino, John Carpenter, nomeadamente, ele foi sempre alguém com uma percepção clara de que alguma coisa de essencial havia no cinema anterior a ele que podia e devia ser aproveitada, quanto mais não fosse um estilo de trabalho cinematográfico que estabelece laços de cumplicidade imediatos com qualquer público. Ora isto, que nele é instintivo e lhe tem permitido alcançar sucessos que se contam entre os maiores da história do cinema em termos de resultados de bilheteira, está de certa maneira fora dos parâmetros em que se move uma geração mais nova, como a de Quentin Tarantino, que tenta criar um novo público para um novo tipo de cinema, indo para isso muito mais longe do que geração de Spielberg estava disposta a ir.
            Dito isto, convém esclarecer que não estou a dizer mal nem de “Relatório Minoritário” nem de Steven Spielberg. Se comecei por tentar situar o filme na obra do cineasta, limito-me, neste momento, a tentar situar o cineasta na actualidade do cinema. E se considerar tendencialmente previsível o actual trabalho cinematográfico de Spielberg for entendido, como pretendo, como reconhecer-lhe um lugar de novo clássico do cinema americano, verão que ele até concordará e poderão, ao lê-lo, nem sequer ficar chocados. É que o melhor do cinema comercial americano continua a passar por aqui e a passar por ele, sem grandes (embora algumas) surpresas, é certo, mas também sem grandes decepções.
                              
Que os filmes dele com carácter mais grave manifestam uma grande inteligência narrativa e de construção fílmica é confirmado quer por "Apanha-me Se Puderes"/“Catch Me If You Can” (2002) quer por “Terminal de Aeroporto“, apesar mas também por causa do tom aparentemente mais ligeiro que lhes imprime, para além de “Munique”, de uma forma que vem corroborar este “Relatório Minoritário”, situado já, ele também, tal como “Inteligência Artificial”, do lado dessa gravidade temática, como procurei demonstrar.
Afinal, como tanto ele, Steven Spielberg, como George Lucas, seu contemporâneo e seu cúmplice (e a IL&M está na origem dos efeitos visuais digitais deste filme), bem sabem, o cinema americano continua não só a passar por eles como a depender deles, e pelo facto e pela maneira como o gerem só podemos estar-lhes gratos. Com efeitos especiais, narrativas exemplares, ficção científica e tudo, até porque os efeitos gerados por computador representaram um importante passo no cinema, que eles têm sabido aproveitar para o melhor (enquanto outros nem por isso). E aproveito mesmo para chamar a atenção para os muito elaborados e, por vezes, complexos efeitos visuais deste filme, nomeadamente no que respeita à cidade do futuro, às vias de comunicação e aos veículos - efeitos esses que chegam ao ponto de situar a câmara num cenário digital -, bem como para os figurinos, adereços e cenários, interiores e exteriores.
            No seu todo, aliás, o filme manifesta clara influência do universo da banda desenhada, o que faz parte do estilo do cineasta, pelo menos quando trabalha no género ficção científica e, consequentemente, se apropria do imaginário respectivo. E manifesta também o entendimento que o cineasta tem da sua função como realizador, na medida em que temos, ao longo de “Relatório Minoritário” como ao longo dos seus outros filmes, a permanente noção de quem detém o controlo das operações. Se a isto juntarmos a excelente fotografia de Janusz Kaminski, que vai ao ponto de tratar os momentos mais negros do filme ao estilo do filme negro americano, e a espantosa partitura de John Williams, que segue a acção do filme até às suas mais pequenas nuances, poderemos compreender a que ponto chega o estatuto deste filme como obra invulgar.
            E se Steven Spielberg tem um indiscutível lugar, à parte e destacado, no cinema actual, isso fica a dever-se à seriedade, que não impede o tom lúdico, com que trata os mais diversos assuntos, da ficção científica à História, passando pela actualidade mais candente, e ao brio formal com que o faz, arriscando não só no futuro como também no passado, e tirando lições do passado para o futuro e para o presente (e do futuro para o presente, sem dúvida), o que é bom ter presente e valorizar devidamente. Aliás, diga-se que o cineasta deve ser entendido como autor cinematográfico, embora se mova no contexto do cinema comercial (o que nem sequer é nada de novo), porque possuidor de uma estética, de um estilo próprio, para além de uma temática pessoal – e neste mesmo sentido devem ser entendidas as alusões que fiz atrás a alguns dos maiores nomes do cinema clássico americano. Além disso, o seu imaginário fulgurante, que tem marcado mais de uma geração, só por si bastaria para demonstrar, de forma exuberante, que ele é um verdadeiro criador cinematográfico, hoje em dia à altura de alguns dos melhores nomes do cinema clássico. E se se considerar o inelutável sentido político dos seus filmes, em especial desde o ano, também fatídico, de 2001, e que quem, antes dele, “pegou” em “A Guerra dos Mundos” (além de Byron Haskin, em 1953, para um filme que fez época e vale a pena conhecer ainda hoje) para uma, aliás célebre, emissão radiofónica, foi Orson Welles, ver-se-á que não estou a exagerar (embora também não esteja a sugerir comparações, que seriam descabidas). Faltar-lhe-á, se faltar, criar grandes personagens femininas autónomas, fora das determinações funcionais em que é perito, o que será, pelo menos, uma maneira de deixar de ser considerado por alguns como “o eterno adolescente, apesar de muito dotado”.
                
        Para terminar, quero voltar à questão da escolha, do livre-arbítrio, que considero fundamental não só em “Relatório Minoritário” como na generalidade da obra do autor. Ela é uma questão central do nosso tempo, como questão central a recebemos da modernidade apesar da relativização a que a tem sujeitado uma certa pós-modernidade. De facto, para o exercício de uma escolha consciente, a qualquer nível, é necessário dispor de informação, de boa informação, para que se possa fazer a melhor escolha. Mas para que a escolha seja a melhor é preciso também educação, a todos os níveis, já que não se pode escolher senão aquilo que se conhece e aquilo em que podemos reconhecer-nos. Ora se a arte, em geral, e o cinema, em especial, nos cria ao moldar os nossos gostos e ao oferecer-nos, no caso do cinema, paradigmas de comportamento que vão moldar o nosso imaginário, convém que estejamos devidamente inteirados sobre o real significado estético, e não meramente sociológico de cada filme, sob pena de podermos tomar por grande arte aquilo que não passe, afinal, de um filme grande e vistoso. Com o que não estou, obviamente, a minimizar o impacto sociológico do cinema, sempre crescente mesmo quando se fala em diminuição do número de espectadores, sobretudo se não o dissociarmos da indústria audiovisual de que desde há muito é inseparável quer a nível de produção quer a nível de distribuição – embora também não se confunda com o chamado audiovisual, em que alguns o pretendem diluir -, mas apenas a chamar a atenção para a necessidade de educar também o gosto cinematográfico e artístico como parte da formação integral do ser humano.
         Isto porque, a meu ver, a sociedade do conhecimento, como as nossas actuais sociedades se pretendem, em especial num mundo globalizado como o nosso, não se pode dar ao luxo de ignorar a arte, as artes, diria mesmo sobretudo uma arte impura como o cinema. Nem as outras artes, puras elas e muito mais antigas que ele, o devem minimizar ou fingir que o ignoram, até porque o cinema, apesar de arte por si mesmo, reconhece aquilo que a elas lhes deve (e quando falo nas artes estou a incluir também, obviamente, as artes da narrativa).
      Por outras palavras: se podemos sempre escolher dentro dos dados da nossa própria experiência, convém que essa experiência, de que a educação faz parte integrante, seja tão grande e diversificada quanto possível. Ora isso depende de nós, assim nós o saibamos escolher para aqueles que educamos e formamos. 
                              
        E seja-me permitido, ainda, acrescentar, que a escolha bem informada sobre o cinema passará sempre por saber distinguir entre Orson Welles e H. G. Wells, entre Jean Renoir e Jean-Luc Godard, entre Steven Spielberg e Steven Soderbergh, e também, naturalmente, entre Sergei Eisenstein e Albert Einstein, o que nem sequer digo por acaso ou para ironizar, mas como fruto dos meus já muitos anos de ensino do cinema e para manter os pés bem assentes na terra. Isto porque, como em tudo, também no cinema só se pode escolher entre o possível, o existente.

Abril 2007

Sem comentários:

Enviar um comentário