Desde o título,
“Tabu”, que Miguel Gomes não esconde ao que vem no seu último filme (2011). De
facto, com esse título não é preciso andar com uma candeia à procura na
história do cinema do que aqui pode estar em causa, dado ser esse também o título
do último e mítico filme de Friedrich W. Murnau, com participação de Robert Flaherty (1931). Contudo, o jovem cineasta português surpreende
completamente com as voltas que faz dar aos primitivos amores perfeitos do seu
filme.
Contra essa aparente evidência mas sem a negar, o título refere-se a um monte próximo do local onde se situa a segunda parte do filme e “Tabu” de Miguel Gomes é
antes de mais um filme surpreendente por ser a preto e branco e assumir os
lugares comuns de uma actualidade bem comportada na sua primeira parte,
“Paraíso Perdido”, passada nos nossos dias em Lisboa, para na segunda,
“Paraíso”, investir deliberadamente uma realidade de um outro tempo, o passado,
num outro espaço, a África colonial portuguesa. Um golpe de suprema sabedoria está nisto
envolvido, pois é a actualidade de personagens hoje idosas que surge como
datada e baça, enquanto o passado delas contém em si toda a carga de fascínio
romântico.
Assumindo sem complexos ou
ambiguidades o seu programa narrativo, Miguel Gomes não é, contudo, ingénuo,
pois mostra saber que os amores perfeitos são os amores perdidos, como
os românticos, que não estão em moda, sabiam. Para tornar o seu filme perfeito,
o cineasta não guarda distâncias em relação às suas personagens na actualidade, salvo na cena da selva no shopping, que introduz a selva real mas tratada como se fosse de artifício, em que as vem a guardar
relativamente ao passado, com a perturbante mas encantatória voz-off de Ventura, que no entanto surge
depois da morte da Aurora, e com a ausência dos diálogos directos das
personagens recordadas do paraíso. Mas não apenas isso. De facto, entre Ventura
e Aurora no passado africano ele não interpõe apenas o marido dela, e pai do
seu filho, como também o amigo dele, Mário, de tal forma que nem sequer da
saída airosa de o pai da criança (que nunca vemos) não ser o marido da mãe ele
aqui se serve.
Romântico contra os lugares comuns
do romantismo, “Tabu” vai ao encontro da raiz primitiva e selvagem do filme de
que (eventualmente) parte para lhe subverter os dados de partida, pois os protagonistas não são
indígenas mas portugueses brancos às voltas uns com os outros no começo do fim
do império colonial. E ao fazê-lo o cineasta não assume uma perspectiva de
saudosismo colonial, antes procura encontrar, e encontra o estranho perfume do
passado, que identifica na sua origem com desassombro, mantendo sempre, porém, a
distância do preto e branco, da voz-off
narrativa e do ponto de vista (salvo quando está em causa o par romântico do passado), o que são todos eles processos originais e
estritamente cinematográficos de convocar a distância, que no entanto não
anula, antes aumenta o fascínio da história de amor que é narrada como
recordação – e que é representada como mitologia primordial no presente, primeiro no prólogo do filme e depois na morte de Aurora, na figura comum da história evocada como filme para Pilar e
da história de Aurora com Ventura: o crocodilo. E repare-se que desde o início Aurora conta a Pilar um sonho, aquele que a terá levado a jogar no casino, e em toda a primeira parte nos soturnos interiores de Aurora e Pilar em que é negada a profundidade de campo, o que completa a proximidade da câmara em relação às personagens (e é reforçado pelo nevoeiro sobre Lisboa) e na segunda parte, até porque maioritariamente passada em exteriores, já não se verifica.
Deste modo, funcionando em níveis
diferentes, “Tabu” faz esses diferentes níveis rebaterem-se uns sobre os
outros, o presente sobre o passado, o passado sobre o presente, nos tempos
diferentes em que se desenrola, de tal modo que o passado conserva o seu
fascínio e o seu mistério para quem o viveu e para uma eventualmente desatenta
embora possivelmente romântica Pilar, de quem a serva negra de Aurora, Santa, faz com que
sejam guardadas todas as distâncias, ela que é a possível testemunha
sobrevivente do que outros viveram no passado.
Mas se o filme trata muito bem a
narrativa não se fica por aí (o que não seria pouco), pois consegue captar o ar
dos tempos, uma actualidade bem comportada e um passado de má fama, com recurso
a meios exclusivamente fílmicos, que permitem transmitir e compreender de forma
clara épocas, personagens e contextos diferentes. Assim, do passado distante, e em relação
ao qual são guardadas todas as distâncias, subsiste a memória de um infeliz
amor perfeito, enquanto do presente nem isso, a memória, subsistirá, a não
ser para os espectadores.
Mais ainda: a distância
assume mesmo um tom de caricatura no Paraíso, o que faz com que mesmo em relação a um possível
romantismo sejam guardadas distâncias, em que até quem morre (é morto por
Aurora no fim) não é Ventura mas o seu amigo, Mário, e quem se
mata não tem que ver com a história dos dois. Ora dessa maneira o cineasta
evita a possível tentação do sublime
e em vez dele dá ao filme um inequívoco e superior tom de frescura e ousadia, sem ocultar
a possível contaminação de ingénuos mas sinceros amores passados às personagens
da actualidade, Pilar e o seu apaixonado, maduros, muito responsáveis e sensaborões.
E repare-se ainda que do próprio passado
evocado são transformados os comportamentos das personagens, que são
parcialmente actualizados sobre a ausência de som, salvo, rarefeito, o ambiente, o que vai tornar o filme quase abstracto na sua segunda parte, uma
abstracção viva de amores vivos mas fugazes, que como tudo passaram na voragem
do tempo. Tudo foi muito importante, fundamental mesmo no momento em que
aconteceu e para quem o viveu, mas mesmo então foi breve e acabou. Sem sequelas ou vestígios, para além de uma
correspondência (a de Aurora lida pela voz-off dela), de que Ventura terá destruído a última carta recebida, e da memória que, essa, não pode
ser rasurada, em especial a memória do tempo primitivo e selvagem da juventude,
o que o filme constrói e restitui como tal de forma superior.
“Tabu” de Miguel Gomes é, então, um
filme de amor? É isso mesmo, um perfeito filme de amor sobre amores perfeitos.
O resto é, ou seria, literatura, que há sempre quem escreva. Isto é cinema do
melhor, em que o preto e branco, a morte de Aurora e a voz-off
de Ventura (e de Aurora) são as cinzas de tais amores. Até o
crocodilo que os aproximou desaparecerá com a memória deles. Ficou o filme, cristal perfeito imensamente livre e jubiloso, para muitas ou
poucas memórias.
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