“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 14 de abril de 2012

Percurso exemplar


          Cristi Puiu é um dos nomes mais destacados de um novo cinema romeno, uma "nova vaga" romena que tem chamado sobre si as atenções desde o início deste século, responsável primeiro por “A Morte do Sr. Lazarescu”/"Moartea domnului Lazarescu" (2005), depois por “Aurora” (2010), os dois primeiros filmes da prevista série denomida “Seis Histórias dos Subúrbios de Bucareste”. Se o primeiro fora uma autêntica revelação, “Aurora” confirma plenamente a promessa que ele continha e surge como um conto da banalidade quotidiana de um cidadão com toda a aparência de normalidade que, porém, comete crimes, assassinatos aparentemente gratuitos e sem explicação.
         Contudo, só aí chegamos uma hora e vinte minutos depois de o filme ter começado, tempo durante o qual acompanhamos o quotidiano banal de Viorel, interpretado pelo próprio realizador (também argumentista do filme), desde a sua saída de casa e na tentativa de comprar uma arma. Mas logo aí somos surpreendidos pela forma do filme, já que o cineasta opta por filmar o protagonista em planos longos, sobretudo em interiores, de maneira que lhe permite esgotar um ponto de vista para mostrar em continuidade espacial e temporal os micro-movimentos dele, sempre com um inteligente aproveitamento do espaço do plano e do fora de campo, com grande atenção aos ruídos e sem música.
                                             
         Nada há, portanto, de gratuito no processo deste filme, apesar de ele mostrar actos aparentemente gratuitos, já que ao acompanhar constantemente Viorel o cineasta permite que a partir do comportamento dele o espectador vá formando a sua opinião sobre ele e sobre aquilo e aqueles  que o rodeiam. Aliás, se algum paralelo pode existir entre este projecto de seis filmes de Cristi Puiu e os “Seis Contos Morais” com que o francês Eric Rohmer começou a sua obra no início dos anos 60 – há, portanto, 50 anos - ele situa-se precisamente em fornecer ao espectador os elementos necessários e indispensáveis à formação da sua própria opinião, do seu julgamento pessoal sobre a situação, as personagens e a narrativa.
            Assim, como em “A Morte do Sr. Lazarescu”, acompanhamos o desenvolvimento de um processo, de um percurso do qual nos são dadas a ver as peças essenciais, e como aí deparamos com um ambiente de alheamento geral, de abandono e solidão, que parece caracterizar a sociedade romena actual – e se calhar não só ela. De facto, não somos confrontados com frequência nos noticiários diários com notícias sobre casos semelhantes, que podem parecer devidos a um momento de loucura mas podem advir de um quotidiano deprimente, em que o ser humano se sente esmagado e ignorado por uma sociedade que anda cada vez mais depressa e com cada vez menor atenção ao indivíduo? Mas também se deve considerar que crimes como os deste filme, aparentemente motivados por ressentimentos pessoais e ódios mesquinhos, são comuns, sempre se deram em todos os tempos e em todos os lugares.
        Ora é precisamente pelo tema escolhido e pela maneira de o tratar que Cristi Puiu consegue, em “Aurora”, um filme muito longo, criar alguma coisa que em termos fílmicos e em termos humanos, embora parta de uma situação individual atinge ressonância universal ao nível de um banal quotidiano que pode explodir, sair dos carris de um momento para o outro sem motivo razoável aparente. Tanto mais quanto o caso narrado não é dos mais frequentes, porque espectaculares, mas o de um aparentemente pobre homem que, consigo próprio e para si próprio, resolve assumir comportamentos cuja origem só ele saberá explicar, o que torna o seu um caso tanto mais sintomático e significativo, sem pretender atingir o momento de fama que casos frequentes da vida real parecem procurar. Há, de facto, alguma coisa de rohmeriano, mesmo de bressoniano neste filme e no seu protagonista, no seu percurso dir-se-ia exemplar a vários títulos.
                        
           O trabalho do filme sobre o contraste entre o corrente e o incomum permite perceber o que se joga ou pode jogar no quotidiano de tantos cidadãos comuns como julgamos todos ser, e surge com tanto maior pertinência narrativa quanto mais justo, contido e perfeito é o trabalho formal, não especulativo nem espectacular do filme, para o que o trabalho dos actores, com destaque para Cristi Puiu, contribui decisivamente. Mas mais. Aqui a profundidade de campo e os movimentos de câmara pensam a personagem e o filme, como pretendia Gilles Deleuze a partir de Jean Renoir e Orson Welles, Alexandre Astruc e Pier Paolo Pasolini, como neste último abrindo para uma via teoremática de uma forma consciente, consistente e muito bem elaborada (1), com tanto maior interesse quanto estão em causa os gestos quotidianos insignificantes de um homem insignificante, que assim ganha um estatuto novo, cujo significado real pode, em contexto, ser pensado (2). Um homem tão banal, tão sem qualidades que pode ser um homem qualquer, pode, ao tornar-se imprevisível, dizer-nos alguma coisa da banalidade do quotidiano e da inesperada irrupção da violência no seu seio - uma violência desse modo tornada, ela também, banal. Podia ser qualquer um de nós ou dos nossos conhecidos? Vítimas inocentes, como o sr. Lazarescu do filme anterior de Cristi Puiu, ou culpados inesperados, como o Viorel que em "Aurora" ele interpreta - como o anterior um senhor K de uma kafkiana história. Porque nos conhecemos mal, a nós próprios e uns aos outros, a imagem deste filme pode ser muito útil para quem queira, sem preconceitos, descomprometidamente olhar para ela, até porque é objecto de uma perfeita construção formal que, contudo, não a vem tornar mais atractiva, pois conserva sempre a justa distância, aquela que permite melhor entender o que é mostrado e narrado.
         Neste filme se reafirma, pois, um grande novo cineasta e de uma muito importante "nova vaga", a do cinema romeno, com nomes como Corneliu Porumboiu, Catalin Mitulescu, Cristian Mungiu, Cristian Numescu e Radu Muntean, que para mais é acompanhada por outras, como a argentina e a alemã, a turca e a filipina, por exemplo. O futuro do cinema está a passar por ele, está a passar por eles e por elas, na medida em que segue(m) o presente da sociedade contemporânea com grande rigor estético e ético, com grande sagacidade humana e grande sageza fílmica e narrativa.

Notas
(1) Cf. Gilles Deluze, in “L’image-temps”, Les Éditions de Minuit, Paris, 1985, pp. 226-230, de que existe neste momento edição portuguesa: “A Imagem-Tempo”, Assírio & Alvim, Lisboa, 2006.
(2) O que permite mesmo admitir que neste filme Cristi Puiu supera a contraposição entre um cinema de prosa, defendido nos anos 60 por Eric Rohmer, e o cinema de poesia proposto na mesma década por Pier Paolo Pasolini, surgida no decurso de uma polémica célebre.

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