“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 14 de abril de 2012

A morte do fotógrafo


            “O Estranho Caso de Angélica” (2010) é um filme estranho e belíssimo de Manoel de Oliveira, que aproveita um argumento seu dos anos 50 que nunca antes tinha podido concretizar, na época por motivos conhecidos, e que na obra dele rima com “Vale Abraão”, de que forma como que um contraponto masculino.
              Passado e rodado na Régua, na margem direita do Rio Douro, narra a história misteriosa de um fotógrafo assombrado, possuído por uma morta, Angélica/Pilár Lopez de Ayala, que é convocado para fotografar. Desde esse primeiro contacto que, através da máquina fotográfica, ele a vê sorrir-lhe, de olhos abertos, e depois disso, durante o sono ou acordado, a presença dela persegue-o ao ponto de ele se interrogar se se tratará de alucinação ou se não terá enlouquecido. Ora este estado estranho, estranhíssimo do protagonista contrasta, em cada momento, com a normalidade da vida que decorre a seu lado, no meio em que habita. Ele é que começa por mostrar interessar-se por coisas que não interessam aos outros, como por aqueles que cavam a terra enquanto cantam, o que vai dar pretexto para que o realizador enriqueça a sua obra com esse tipo de imagens e sons.
                                
            Mas o que, além do tema, singulariza este filme, que se segue a “Singularidades de uma Rapariga Loira” (2009) na obra do cineasta, é o portentoso trabalho formal sobre o espaço, desde o plano de abertura, fixo e muito longo, até aos espaços da pensão, o quarto e a sala do protagonista, onde o contracampo absoluto, com a passagem para o lado do fotógrafo - o espaço em que ele, perturbado, estivera entre a janela e as provas fotográficas penduradas -, dá a plena dimensão da solidão e do abandono a si mesmo de Isaac/Ricardo Trepa, que os ruídos provenientes do exterior, ouvidos através da janela sem que nunca seja mostrada a sua origem, para desnorte da própria personagem vêm sublinhar. Por sua vez, quando na sala de jantar, ele surge como estranho para os outros hóspedes da pensão e sobretudo para a respectiva dona, que não esconde o fraquinho que tem por ele. E de facto nesse espaço ele entra como um estranho, aí vai encontrar um periquito, primeiro vivo e mais tarde morto, como que numa estranha premonição do que a ele próprio lhe vai acontecer.
            O outro espaço importante do filme é a casa da mãe de Angélica, onde ele começa por se dirigir e de onde sai da última vez em estado de extrema perturbação, esquecendo as fotografias que ali o tinham levado e berrando por Angélica – plano assombroso em que a criada/Isabel Ruth se aproxima dele, em primeiro plano, proveniente das escadas ao fundo. Também a primeira conversa na sala de jantar da pensão tinha sido dada em plano fixo e longo, e durante ela houvera pretexto para alusões que despertam o protagonista para outros, estranhos universos, assim o confirmando naquele que habita e no que o habita.
           No final, como em “Vampyr” de Carl Th. Dreyer (1932), o protagonista desdobra-se para partir com Angélica, como tinha acontecido aquando do seu primeiro contacto com ela, durante o sono, durante um sonho – e este é, fora dos seus filmes históricos, o filme em que o cineasta mais declaradamente entra no mundo dos sonhos. Aliás, Isaac surge desde o início como um duplo do próprio Manoel de Oliveira, desde logo pela sua profissão mas também por uma impressionante semelhança física e fisionómica de Ricardo Trepa com o seu avô, que este explora e trabalha enquanto cineasta. E depois da estranha morte do fotógrafo e da partida do seu fantasma (da sua alma?) com Angélica, somos deixados no escuro no quarto do morto, demonstração cristalina de que Oliveira não brinca, aqui como noutros casos, com os seus filmes nem com os seus espectadores: o mistério, o inexplicável como tal deve ficar, permanecer intacto.
                      
           Se Manoel de Oliveira é um génio original e único do cinema português e do cinema tout-court é pelo que ele se arrisca a fazer de forma solitária e persistente, com grande coerência e sem atenção por modas ou conveniências, antes perseguindo a sua própria ideia, aquilo que em si, nos outros e no mundo o assombra e o desafia – a facilidade não é com ele. E que estranho é ser-se deixado no escuro no final de um filme estranhíssimo… O que morre e o que daquele que morre permanece não coincidem para os que ficam, e isso faz com que “O Estranho Caso de Angélica” seja o estranho caso do fotógrafo, que a dona da pensão dizia que trabalhava demais.
            Cada vez mais ele próprio, fiel a si mesmo até nos seus projectos, Manoel de Oliveira prossegue o seu percurso imparável indiferente ao que se passa em volta, sem, contudo, esquecer o mundo em que vive, com os seus novos problemas e novos conhecimentos, o que nele persiste ainda embora tenda a perder-se. Ora é da desadequação entre Isaac e o mundo que o rodeia a todos os níveis, do contraste que ele com este estabelece, que o cineasta tira aqui o melhor partido e o melhor proveito. De há muito que sabemos que o caso dele é entre ele e ele próprio, como é bom que aconteça em primeiro lugar em qualquer arte com qualquer grande artista, como ele indubitavelmente é.
            Num filme sobre a paixão por uma morta a música é de Chopin, interpretada por Maria João Pires e com um papel relevante na criação do mistério, do estranho segredo do filme.

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