(continuação)
As
cidades dos cineastas
Sem dúvida que certos cineastas
associaram o seu nome e a sua obra a certas cidades, que souberam entender e
transmitir de forma particularmente feliz.
Mesmo nos casos citados, e noutros,
é importante que os filmes e os cineastas mencionados sejam aqueles e não
outros, na medida em que essa relação implica sempre um olhar especial sobre a
cidade.
Mas a relação entre Roberto
Rossellini e Roma, presente, nomeadamente, no já citado "Roma Cidade Aberta"
ou em "Era notte a Roma" (1958), ou entre Federico Fellini e a mesma
cidade, em "A Doce Vida"/"La dolce vita" (1960) ou em
"Roma de Fellini"/"Roma" (1972), tem alguma coisa que ver
com o imaginário particular de cada cineasta, o que, no caso do segundo, se
torna particularmente evidente num filme como "A Cidade das Mulheres"/"La città delle donne" (1980). O mesmo se dirá da relação de Vittorio De Sica com Milão.
Mas muitos outros casos, passados e
presentes, seriam de mencionar, como Paris, mas também outras cidades francesas, de Jean Renoir e René Clair, da
“nouvelle vague”, de Philippe Garrel, Leos Carax e Cristophe Honoré; Londres e outras cidades inglesas de
Alfred Hitchcock, David Lean, de Michael Powell e Emeric Pressburger, do “free cinema” e de Mike
Leigh; Munique, Berlim e outras cidades alemãs de Rainer Werner Fassbinder, Wim Wenders e outros nomes do "cinema novo alemão"; Viena de Áustria de Carol Reed
e Orson Welles; Nova Iorque de John Cassavetes, Sidney Lumet, Martin Scorsese,
Woody Allen e Spike Lee; Calcutá de Satyajit Ray; Tóquio de Yasujirô Ozu; Hong
Kong de Wong Kar-wai; o Cairo de Youssef Chahine; Madrid de Pedro Almodôvar; Marselha de Robert Guédiguian e Nápoles
de Mário Martone; o Rio de Janeiro de Glauber Rocha e Fernando Meirelles, São Paulo de Walter Salles; ou Lisboa de Paulo Rocha, Fernando Lopes, João César
Monteiro, João Botelho e Pedro Costa. São cidades reais que entram no
imaginário dos espectadores tal como para eles foram imaginadas, a que haverá
que acrescentar as cidades europeias revisitadas por Woody Allen nos seus
filmes mais recentes: Londres, Barcelona, Paris.Mas as relações entre as cidades e os autores de cinema passa, frequentemente, por uma especial capacidade para as evocar, para as recordar e sonhar, como acontece com Fellini, com Truffaut ou com Scorsese, ou então por uma capacidade para as transfigurar, como acontece com Ozu, com Fassbinder e Wenders ou com Cassavetes.
Há um olhar especial sobre a cidade
que singulariza cada um dos cineastas que dela tratou, dos mencionados ou
outros. Há uma especial sensibilidade a aspectos arquitectónicos, a aspectos
humanos, que funciona de uma maneira nuns cineastas, de outra noutros. Tudo
depende quer do cineasta, quer da cidade, e da relação que entre si mantêm. Também
neste aspecto, Woody Allen e Almodóvar são exemplares.
Ora esse olhar sobre a cidade pode,
também, ser um olhar documental, como o de Joris Ivens sobre Roterdão ou Paris,
o de Walter Ruttman sobre Berlim, o de Dziga Vertov sobre Odessa, o de Manoel
de Oliveira sobre o Porto, o de Jean Rouch sobre Abidjan mas
também sobre Paris, ou, muito perto de nós, o de Sérgio Tréfaut sobre Lisboa - mas também o de João Canijo em "Fantasia Lusitana" (2010).
Mas existem ainda as cidades dos
géneros, nomeadamente da comédia,
como a Lisboa da comédia dos anos 30 e 40, ou a Roma da comédia
italiana dos anos 50 e 60, a
Paris de Jacques Tati ou a Nova Iorque de Woody Allen. Sempre estão em causa olhares pessoais, temas pessoais, obsessões pessoais, o que leva a que cada cidade seja, no cinema, sempre uma cidade imaginada, uma cidade mítica e mágica, uma cidade espectral, que cada espectador saberá entender e fazer sua.
Claro que, de cada cidade, cada
filme reproduz os espaços urbanísticos e arquitectónicos, do mesmo modo que
lhes capta as gentes e os modos de vida. A cidade fílmica é, assim, uma cidade sempre
inventada, sempre criada filme a filme, cineasta a cineasta, sempre diferente,
construída espaço a espaço pela descontinuidade fílmica típica do cinema, que
torna filmicamente contíguo o que é fisicamente descontínuo.
Além disso, a cidade, cada cidade,
tem as suas cores específicas, que servem para a caracterizar e singularizar,
que o cinema, desde que adoptou a cor, passou a captar também como mais um
elemento realista ou como mais um elemento de abstracção. De igual modo, cada
cidade tem a sua luminosidade própria, o que o cinema, a preto e branco ou a
cores, sempre soube tratar e integrar, mesmo nas cidades cenograficamente
construídas em estúdio, como tipicamente aconteceu com o filme
negro, no prolongamento da inspiração do expressionismo alemão. Tal como
cada cidade tem os seus próprios habitantes, com hábitos e comportamentos próprios, e é nesse encontro entre o criador cinematográfico e o concreto que se define um grande cineasta (10).
A
cidade pós-moderna
Na actualidade, a cidade tem marcas
distintivas que permitem falar, na sua representação pelo cinema, de uma cidade
pós-moderna. Já não são questões de presente e de passado, de histórico e de
moderno, mas de uma circunstância diferente em que as luzes, os brilhos da
cidade ofuscam e impõem um espaço novo, como de sonho mas também de pesadelo.
Nesta nova cidade mergulha-se a
partir da distância até nela se penetrar, do distante para o interior, por
vezes até às vísceras. E nela não foi só a arquitectura que mudou, foram as
relações entre as pessoas que mudaram, que se desumanizaram ainda mais. Assim, o
espaço da cidade transformou-se numa espécie de espaço virtual, virtualizado
por se ter tornado um espaço de passagem acelerada, no limite do desabitado, pelo
menos durante grande parte do dia. As relações humanas tornaram-se quase
abstractas mesmo na proximidade, enquanto as distâncias são quebradas na televisão e no ciberespaço.
Não devo ignorar as imagens
televisivas dos ataques às Torres Gémeas de Nova Iorque, que marcaram o início
do século XXI, já que elas são imagens em
directo da cidade atingida por meios aéreos, depois repetidas uma
infinidade de vezes nos diversos ecrãs. A esse propósito, o filme que mais me
interessou foi “World Trade Center” (2006), de Oliver Stone, com a sua austera reconstituição
da operação de salvamento de dois homens soterrados.
Mas há mais imagens dessa cidade pós-moderna para que quero chamar a atenção. Das relações carnais e metálicas de “Crash”, de David Cronenberg (1996), às relações rarefeitas de “Lost in Translation”, de Sofia Coppola (2003), e às relações desfeitas de “Alice”, de Marco Martins (2005), são a velocidade, o desencontro e a impossibilidade que se impõem. Da Barcelona de José Luis Guerín (“En construcción”, 2001) à Lisboa de João Pedro Rodrigues (“O Fantasma”, 2000; “Odete”, 2005) e João Canijo (“Sangue do Meu Sangue”, 2011), são as mudanças no cenário que impõem a transformação humana. Como fica, assim, longe, nas margens da memória, o Porto de Manuel de Oliveira (“Douro, Faina Fluvial”, 1931; “Aniki-Bobó”, 1942; “O Pintor e a Cidade”, 1956), distância que “Porto da minha infância” (2001) documenta e comenta, uma cidade no entanto revisitada recentemente com brio por Paulo Rocha (“O Rio do Ouro”, 1998; “As Sereias”, 2001; “Vanitas”, 2004).
Mas a cidade feérica também tem
gente que parcialmente esmaga, como a Los Angeles de “Heat” (1995) e de
“Colateral” (2004), ambos de Michael Mann, e ganha uma nova pertinência o olhar
de David Lynch sobre Hollywood, em “Mulholland Drive” (2002) e em “Inland
Empire” (2006), que é também um olhar sobre o próprio cinema. E que dizer da
Lisboa de Pedro Costa, senão que precisou dele e dos seus filmes para existir, sem prejuízo do interesse que
sobre o centro da cidade perante o vazio apresenta “The Lovebirds” (2007), de
Bruno de Almeida, e sobre os seus subúrbios convulsivos e incomunicantes
evidencia “Entre os dedos”, de Tiago Guedes e Fernando Serra (2008). Ou então cidades como Hong
Kong de Johnnie To, Taipei de Edward Yang, Pequim e Xangai de Jia Zhang-ke, as cidades japonesas de
Takeshi Kitano.
A escala humana passou a tornar-se mais palpável, mais
visível, mais contactável num espaço virtual que num espaço real tornado
fluido, fugidio. A materialidade da cidade escapa-se enquanto a imaterialidade da
comunicação se impõe. As pessoas encontram-se nos novos espaços públicos como novas
arenas de convívio impessoal, que tentam humanizar, enquanto se conectam na internet.
As distâncias anulam-se e percorrem-se rapidamente, e ao avançar
para o futuro como que viajamos, no cinema, para o passado: o passado dos
lugares que visitámos e que conhecemos, pelo menos da História do Cinema. A cidade pós-moderna torna-se um emaranhado de encruzilhadas, de passagens desniveladas, actualizando as previsões visionárias do passado e abrindo para novos labirintos, exteriores e interiores (e há os labirintos exteriores que começam por ser interiores - de "Shining", de Stanley Kubrick, 1980, a “Lost Highway”, de David Lynch, 1997, e “Spider”, de David Cronenberg”, 2002 - e os labirintos temporais dos filmes de Raoul Ruiz). E quanto mais digitalmente retocada mais atraente e feérica ela fica, mas também de aspecto menos humano, mas terá que se observar que o próprio humano mudou, como que se tornou mutante, nomeadamente porque a sua relação com a técnica acelerou a sua relação com o espaço/tempo, transformou a sua relação com o corpo. E agora o cinema antecipa outros futuros, não por acaso catastróficos, o que, com os sucessos do passado recente, nem sequer é de espantar (“A. I. – Inteligência Artificial”/”Artificial Intelligence: A. I.”, 2001, e “Relatório Minoritário”/”Minority Report”, 2002, ambos de Steven Spielberg).
Mas nos novos espaços da cidade,
novos encontros de formas arquitectónicas geram novas possibilidades de
exploração da criação audiovisual, de hibridação de meios, de técnicas, de
formas de expressão, novos espaços para os novos suportes. Mesmo para o cinema,
o espaço da sala deixa de ocupar o lugar central que ocupava, disseminado como
passou a estar pelas grandes superfícies comerciais e desprovido de filmes que
não estreiam em sala e passam para o circuito DVD, além de poderem ser
acessíveis na internet. A uma nova
relação com o tempo corresponde um novo consumo dos filmes, também ele
descentrado e mais acelerado. Mudou o contexto, altera-se a sociologia do
cinema (11).
Mas refira-se, também, as cidades
ainda humanizadas como as dos filmes de Abbas Kiarostami, o cineasta iraniano
que melhor tem feito a crítica da cidade pós-moderna em filmes sobre um país e
um povo em constante catástrofe mas onde as pessoas ainda se procuram, bem como
a Fenyang e a Fengjie dos filmes do chinês Jia Zhang Ke, em cujas ruas e casas o cineasta
tem reinventado o cinema. Mas também os filmes do turco Nuri Bilge Ceylan, do
filipino Brillante Mendonza e de tantos outros que têm procurado nos conflitos
das suas personagens cosmopolitas, mas tantas vezes nas margens da metrópole, o
pulsar novo de uma nova modernidade que já é, em larga medida, virtual, mas
conserva as suas resistências instaladas em modos de vida tantas vezes
tradicionais e de proximidade. E tenha-se presente que um cineasta tão
importante como Gus Van Sant não anda longe de uma crítica semelhante. Uma crítica
que, aliás, não se dirige apenas à cidade mas também ao próprio cinema, em que
passaram a dominar os efeitos especiais digitais para gáudio da esmagadora
maioria, que talvez tenha passado a pensar que agora o cinema e também a vida
passaram a ser assim – e se calhar não estamos longe disso (12).
Notas
(10) Sobre uma temática semelhante, embora extra-cinemtográfica, ver "O Artista e a Cidade", de Eugenio Trías (Fim de Século, Lisboa, 2010 - a edição original espanhola é de 1974). Sobre esta temática no cinema, ver "A Cidade Imaginária", de Luiz Nazario (org.), Editora Perspectiva, São Paulo, 2005.
(11) Sobre o mundo contemporâneo, incluindo a cidade, ver de Vicente Verdú, "O Estilo do Mundo - A vida no capitalismo de ficção" (Fim de Século, Lisboa, 2008 - a edição original espanhola é de 2003).
(12) Sobre a matéria tratada nesta última parte, isto é, sobre uma nova modernidade que poderemos estar a viver e que terá sido, segundo alguns, onde foi parar a primitivamente chamada pós-modernidade, gostaria de aconselhar dois autores: Thomas De Koninck, de quem está editado em português "A nova ignorância e o problema da cultura" (Edições 70, Lisboa, 2003); e Gilles Lipovetsky, de quem estão editadas em português várias obras, entre as quais "A felicidade paradoxal - Ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo" (Edições 70, Lisboa, 2007). Sobre a proposta de uma nova ontologia do cinema ver, de Thomas Elsaesser e Malte Hagener, "Film Theory - an introduction through the senses" (Routledge, New York, 2010). E convém não esquecer que a cidade securitária, sobretudo pós-11 de Setembro de 2001, é aquela em que estamos quando vamos trabalhar, quando vamos ao cinema ou assistir a outro espectáculo, aquela em que vivemos.
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