“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

quinta-feira, 24 de maio de 2012

A tempestade


            Uma pequena cidade do interior (Elyria, Ohio), um homem casado e com uma filha surda-muda, que trabalha e leva uma vida normal que, contudo, de um momento para o outro começa a ser sobressaltada por sonhos estranhos, pesadelos inexplicáveis que inexplicavelmente lhe deixam marcas físicas. Teme o pior sobre si próprio, pede conselho médico, lembra a mãe, esquizofrénica paranóide desde os 30 anos, começa a temer o pior sobre o mundo em que vive.
            Tudo isto nos é dado em imagens simples, directas, elementares, mesmo os sonhos, com um espantoso Michael Shannon que no seu rosto, no seu corpo cria o progressivo resvalar de Curtis para a loucura. É um homem só face a si mesmo e à sua transformação no meio familiar e de trabalho em que continua a mover-se. Pressente uma ameaça, contra a qual constrói com um amigo um abrigo no quintal da sua casa. Quando a tempestade se anuncia aí se abriga com a mulher e a filha, num momento crucial, superiormente trabalhado do lado da luz e das sombras, em que Samantha/Jessica Chastain o obriga a ser ele a abrir a porta de saída para ascender de novo até á luz.
                        
              Tinha sido despedido por utilização de material da empresa para a construção do abrigo, e a sua entrada em casa para comunicar à família que está desempregado, dada em plano afastado único, é assombrosa. O amigo que o ajudara, e se sentira traído e abandonado, desafia-o durante uma festa e ele tenta afastar o conflito para outro momento. Terá o futuro que conseguir construir com a ajuda da mulher.
            De Jeff Nichols, de quem nos chegara já “Histórias de Caçadeira”/”Shotgun Stories” (2007), um excepcional filme de estreia, chega-nos agora este “Procurem Abrigo”/”Take Shelter” (2011), prodigioso filme de contensão e pudor que se desdobra numa tensão crescente mas que não explode em espectáculo, antes se oferece como drama comum de um homem comum atingido pelo inominável. Jeff Nichols é provavelmente o nome mais importante de um novo cinema independente que está a estabelecer novos e inesperados rumos para o cinema americano, fora do contexto da grande produção massificada mas com um enorme peso e uma extraordinária qualidade estética, que nasce de uma exigência que não tem que fazer concessões de qualquer espécie, estribada como está na sua própria independência, observação e criação. Deste novo cinema independente vimos há pouco “O Atalho”/”Meek’s Cutoff” (2010), de Kelly Reichardt, surpreendente e excelente também.
                         
         Recorde-se que o cinema independente tem uma história muito importante na América, onde nasceu em New York com John Cassavetes, Jonas e Adolfas Mekas e o New American Cinema, prosseguiu com  Jim Jarmush, Gus Van Sant, Hal Hartley, e renasce agora numa outra geração e num outro contexto, o de um país que atravessa uma crise, diversas crises profundas. “Procurem Abrigo” tem sido visto como um sinal dessa crise, desde logo a que resultou do crash bolsista de 2008 e arrastou o país e o mundo para a maior crise desde a Grande Depressão dos anos 30. É muito possível que seja essa crise que neste filme Jeff Nichols encena no microcosmos de uma cidade do interior e no interior de uma família americana.
          O que a mim me impressiona é o espantoso trabalho de mise en scène do cineasta, o trabalho sobre o plano, a direcção de actores, o trabalho sobre os ruídos tratados como música, da música levíssima tratada com extrema propriedade, os planos das personagens tirados contra o céu em fundo, as transições que se fazem com rapidez e fazendo sempre o filme avançar para os sucessivos impasses do protagonista, uma vida posta em transe por razões que o próprio desconhece. Uma América em crise simbolizada por um homem em transe, uma transição que se faz da normalidade para a loucura, uma proximidade que tenta salvar. Não se podia exigir mais, não se devia esperar tanto, mas os independentes americanos têm essa característica da imprevisibilidade, de nos surpreenderem com o que menos estaríamos preparados para esperar. O drama humano em pleno coração do interior americano, sem enfeites, sem arrebiques, sem procurar desculpas nem descobrir culpados, tudo a seco, sem edulcorar personagens, sem elaborar géneros ou melodramas, indo direito ao coração do drama, como já em “Histórias de Caçadeira” de forma superior acontecia.
                         Take Shelter
            É muito importante que filmes como este sejam feitos com um rigor e uma qualidade notáveis, de coração pesado mas olhos secos, fechando espaços abertos, abrindo para outros espaços sem saída, com a noção de que aconteça o que acontecer é preciso continuar, pois nada nem ninguém nos pode ajudar na nossa aflição, na nossa solidão, que atinge indiscriminadamente cada um, o que é mais um motivo para devermos ajudar-nos uns aos outros. Há também o espectáculo, que continua sempre, claro, mas esse é outra coisa, é outra história, mesmo quando reflecte sobre a mesma crise. Aqui nem a escapatória do espectáculo e dos seus truques existe, tudo é trivial e terrível no seu ser quotidiano - as próprias interpretações vão nesse sentido.
          É preciso ver “Procurem Abrigo” para perceber como é, em plena crise, o cinema americano no seu melhor de qualidade e exigência.

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