Uma pequena cidade do interior (Elyria, Ohio), um
homem casado e com uma filha surda-muda, que trabalha e leva uma vida normal
que, contudo, de um momento para o outro começa a ser sobressaltada por sonhos
estranhos, pesadelos inexplicáveis que inexplicavelmente lhe deixam marcas
físicas. Teme o pior sobre si próprio, pede conselho médico, lembra a mãe,
esquizofrénica paranóide desde os 30 anos, começa a temer o pior sobre o mundo
em que vive.
Tudo
isto nos é dado em imagens simples, directas, elementares, mesmo os sonhos, com
um espantoso Michael Shannon que no seu rosto, no seu corpo cria o progressivo
resvalar de Curtis para a loucura. É um homem só face a si mesmo e à sua
transformação no meio familiar e de trabalho em que continua a mover-se.
Pressente uma ameaça, contra a qual constrói com um amigo um abrigo no quintal
da sua casa. Quando a tempestade se anuncia aí se abriga com a mulher e a filha,
num momento crucial, superiormente trabalhado do lado da luz e das sombras, em que Samantha/Jessica
Chastain o obriga a ser ele a abrir a porta de saída para ascender de novo até
á luz.
Tinha
sido despedido por utilização de material da empresa para a construção do
abrigo, e a sua entrada em casa para comunicar à família que está desempregado,
dada em plano afastado único, é assombrosa. O amigo que o ajudara, e se sentira
traído e abandonado, desafia-o durante uma festa e ele tenta afastar o conflito
para outro momento. Terá o futuro que conseguir construir com a ajuda da
mulher.
De
Jeff Nichols, de quem nos chegara já “Histórias de Caçadeira”/”Shotgun Stories”
(2007), um excepcional filme de estreia, chega-nos agora este “Procurem
Abrigo”/”Take Shelter” (2011), prodigioso filme de contensão e pudor que se desdobra
numa tensão crescente mas que não explode em espectáculo, antes se oferece como
drama comum de um homem comum atingido pelo inominável. Jeff Nichols é provavelmente
o nome mais importante de um novo cinema independente que está a estabelecer
novos e inesperados rumos para o cinema americano, fora do contexto da grande
produção massificada mas com um enorme peso e uma extraordinária qualidade
estética, que nasce de uma exigência que não tem que fazer concessões de
qualquer espécie, estribada como está na sua própria independência, observação
e criação. Deste novo cinema independente vimos há pouco “O Atalho”/”Meek’s Cutoff” (2010), de Kelly Reichardt, surpreendente e excelente também.
Recorde-se
que o cinema independente tem uma história muito importante na América, onde
nasceu em New York com John Cassavetes, Jonas e Adolfas Mekas e o New American Cinema, prosseguiu com
Jim Jarmush, Gus Van Sant, Hal Hartley, e renasce agora numa outra
geração e num outro contexto, o de um país que atravessa uma crise, diversas
crises profundas. “Procurem Abrigo” tem sido visto como um sinal dessa crise,
desde logo a que resultou do crash
bolsista de 2008 e arrastou o país e o mundo para a maior crise desde a Grande
Depressão dos anos 30. É muito possível que seja essa crise que neste filme
Jeff Nichols encena no microcosmos de uma cidade do interior e no interior de
uma família americana.
O
que a mim me impressiona é o espantoso trabalho de mise en scène do cineasta, o trabalho sobre o plano, a
direcção de actores, o trabalho sobre os ruídos tratados como música, da música
levíssima tratada com extrema propriedade, os planos das personagens tirados
contra o céu em fundo, as transições que se fazem com rapidez e fazendo sempre
o filme avançar para os sucessivos impasses do protagonista, uma vida posta em
transe por razões que o próprio desconhece. Uma América em crise simbolizada
por um homem em transe, uma transição que se faz da normalidade para a loucura,
uma proximidade que tenta salvar. Não se podia exigir mais, não se devia
esperar tanto, mas os independentes americanos têm essa característica da
imprevisibilidade, de nos surpreenderem com o que menos estaríamos preparados
para esperar. O drama humano em pleno coração do interior americano, sem
enfeites, sem arrebiques, sem procurar desculpas nem descobrir culpados, tudo a
seco, sem edulcorar personagens, sem elaborar géneros ou melodramas, indo
direito ao coração do drama, como já em “Histórias de Caçadeira” de forma superior
acontecia.
É
muito importante que filmes como este sejam feitos com um rigor e uma qualidade
notáveis, de coração pesado mas olhos secos, fechando espaços abertos, abrindo
para outros espaços sem saída, com a noção de que aconteça o que acontecer é preciso
continuar, pois nada nem ninguém nos pode ajudar na nossa aflição, na nossa
solidão, que atinge indiscriminadamente cada um, o que é mais um motivo para devermos ajudar-nos uns aos outros. Há também o espectáculo, que
continua sempre, claro, mas esse é outra coisa, é outra história, mesmo quando
reflecte sobre a mesma crise. Aqui nem a escapatória do espectáculo e dos seus
truques existe, tudo é trivial e terrível no seu ser quotidiano - as próprias
interpretações vão nesse sentido.
É
preciso ver “Procurem Abrigo” para perceber como é, em plena crise, o cinema
americano no seu melhor de qualidade e exigência.
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