Cores que desenham formas, mas cores que contíguas
criam as formas no deslizar de uma para outra dos dois lados do contorno. São
cores calmas, regradas, de transições graduais entre um e outro lado do que as
separa e confere contorno num espaço liso, sem outros elementos que os da
bidimensionalidade da superfície lisa. O contorno é por regra geométrico, mas pode
relevar do estabelecimento de diferentes quadros, resultantes das linhas
divisórias que separam as cores. A forma preferencial é o quadrado, sobre o
qual se estabelecem os limiares de cores. Mas um quadrado que admite outro,
outros no seu interior, que, descentrados, vêm introduzir inesperados recortes, porém dados com formas geométricas simples, abstractas. Um quadrado por vezes alongado num rectângulo, no interior do qual outros rectângulos na horizontal ou na vertical se recortam a partir das cores.
As
séries ordenam-se em volta de amarelos, verdes e azuis, laranjas e vermelhos, e
cada um dos quadros elabora-se segundo a mesma ideia de variação de
cores contíguas, que reelaboram o desenho das formas geométricas repetidas, embora com ocasionais estabelecimentos de contraste nos rectângulos, algumas manchas sem contornos definidos com precisão, um largo vazio central branco. Descentrados, os quadrados resvalam de uma ideia de
proporção dominada para uma ideia de liberdade, de livre jogo no desenho das formas, porém
sempre controladas, portanto capazes de se comporem em cada quadro e
decomporem para se recomporem de um para outro. Mas a continuidade persiste, numa insistência e
persistência na perseguição do ideal do quadrado através da criação das cores,
da sua variação – melódica.
As cores valem por si próprias, significam-se a si mesmas, ao ponto de se tornarem o próprio objecto do quadro. Não brilhantes, nem reverberantes, mas cores que são cores e nada mais que aquilo que cada uma é por si mesma ao escorregar para a que se lhe segue, a continua em variação, por vezes quase imperceptível. Uma cor do princípio ao fim a significar-se a si mesma na sua totalidade, na totalidade da sua essência de cor. Cores puras, em si mesmas e por si mesmas.
As cores valem por si próprias, significam-se a si mesmas, ao ponto de se tornarem o próprio objecto do quadro. Não brilhantes, nem reverberantes, mas cores que são cores e nada mais que aquilo que cada uma é por si mesma ao escorregar para a que se lhe segue, a continua em variação, por vezes quase imperceptível. Uma cor do princípio ao fim a significar-se a si mesma na sua totalidade, na totalidade da sua essência de cor. Cores puras, em si mesmas e por si mesmas.
A
música das cores, a musicalidade das formas que elas criam, abstractas e
contudo muito concretas no seu desfiar contínuo em cada contiguidade, em cada
experiência sobre o modelo de uma cor que se procura e se percebe encontra ao criá-la.
Expressividade da cor, pois, de cores que falam por si próprias na variação e
na delimitação das formas, mas que existem e significam fora dos esquemas coloridos habituais
e contra eles, fora dos contrastes e combinações a que a pintura e outros meios nos
habituaram. São, por isso, cores únicas, que não existem como tal em lado
nenhum, mas criadas a partir da experiência da cor na natureza, no mundo, na
arte.
A
cor e a sua ideia fora de um objecto ou ser concreto torna-se ela própria a
coisa em causa. A
cor é a própria cor e a sua causa, a própria cor e o seu efeito, cor com cor,
cor ao lado, em volta de outra tonalidade da mesma cor. Uma cor concreta e
abstracta, permanentemente em vias de ser outra, de passar a ser outra sem deixar de permanecer o que é, do outro lado da linha que delimita.
As
formas assim desenhadas convergem para diferentes, descentrados
centros, que se multiplicam dentro do mesmo espaço que dividem e subdividem e a que conferem uma concretude que escapa às convenções, para inventar novas formas que a si
próprias se engendram a partir do interior daquela de que nascem e em que se
vão inscrever. Puramente abstractas, as formas desenham a sua
própria multiplicidade a partir de encontros de linhas que separam cores e vão
originar uma proliferação de desenhos, de desígnios pictóricos que na insistência
persistem em desafiar os cânones que aparentam respeitar. Contudo, ao
excedê-los na sua própria reinvenção, criam novos desígnios de sugerida
profundidade sobre si própria, sobre o nada, sobre o vazio que no entanto
negam. Mas não são novos cânones que se inventam, são novas propostas que se
fazem para o futuro, para um tempo fora do tempo e que nos é, contudo, próprio
– o nosso.
Não
há contrastes, nem choques, nem manipulações pesadas, pois tudo parece fluir
com uma espontânea naturalidade, com suavidade que cria e define
os seus próprios contrastes criativos através das formas geradas. A impressão
de continuidade não é quebrada, tudo se constrói na celebração da cor, das
cores tratadas como essências plásticas que se impõem por si próprias, sem
outro recurso que elas próprias. Cores que, contudo, desenham em formas geométricas um
nascimento da forma a partir de si próprias, em formas que por vezes proliferam em mera continuidade, mas sem sobreposição. Assim, com a cor saímos de nós
próprios, saímos delas próprias para passarmos à gradação, à gradual mutação do
semelhante para o semelhante na proximidade maior da contiguidade segundo os
contornos, geometricamente definidos, com excepções mais elaboradas.
Um
quadrado, o quadrado pré-definido, desfaz-se e ao desfazer-se recompõe-se ao
fazer-se a si próprio o mesmo noutro, com uma outra cor, uma mesma tendência de
contorno que contudo não se repete mas reinventa – como a cor. De cada cor
nasce uma nova cor, que contudo permanece na essência a mesma no mesmo quadro - também aqui com excepções. Figuras geométricas assim se formam livremente, sem outro propósito que não seja a cor e o desenho que na continuidade ela gera. Não se pode comparar com nada porque nada como aquilo existe. Aquelas cores,
reconhecíveis, não existiram antes e só ganham existência ali, daquela maneira,
por si mesmas e para aquele desenho de contorno, abstracto.
Cores expressivas,
nascidas de um expressionismo prévio que, pressupondo embora, não prolongam a
não ser na busca da expressão, da expressividade procurada, perseguida e
encontrada em cada quadro, que o seguinte varia e comenta ao valer por si
próprio. Fora do tempo, criam o seu próprio espaço na pura necessidade de dar
existência a cada quadro, em cada superfície plana em que a própria superfície,
pelas formas, pelo desenho, cria portas sobre o vazio, vazio sobre o vazio em
perspectiva, abstracta.
Variações,
ínfimas por vezes, fazem as cores falarem por si próprias a linguagem de uma
poética nova, a poética da cor de que só a cor é capaz e que em nós convoca memórias
primitivas, esquecidas e primordiais, do mesmo modo que nos acorda para cores
futuras que a partir das suas sugestões saberemos descobrir, inventar, criar. Cores que se reinventam nas formas que em contorno, que as delimita, desenham.
Ali
encontrei o “beau séjour” dos meus primeiros anos, no sentido do poeta Manuel de Freitas (1), há tanto tempo já, com as suas cores, os seus móveis, os
seus habitantes. Com aquelas cores e naqueles desenhados contornos rememorei a
braseira, os sofás, a mesa com os comensais sentados, no dia a dia e nos dias
festivos. Como tudo se torna presente na ausência de quase todos, na
inultrapassável ausência do próprio lugar, tudo guardado na memória, agora
desperta, que essa permanece. Reavivam-se as cores do papel da parede, que se
iam delindo progressivamente até ficarem reduzidas… a uma memória agora
reavivada. A luz ao entardecer, o ambiente, os habitantes, as cores. O som das vozes, os ruídos da casa e da rua, os silêncios, os cheiros.
Poder
ver à distância as cores dos poentes de Setembro, quando íamos acompanhar a
casa os amigos que nos visitavam, que depois faziam questão de nos acompanhar por sua vez no
regresso, a partir das cores que aqui valem por si próprias, criam e recriam a
partir de si próprias outras cores que as continuam num espaço que apenas
finas linhas de contorno, quase invisíveis separam. Todo o mundo, talvez o melhor de uma
vida a partir do que nada representa figurativamente mas se limita a
construir-se como nada sobre nada, ou ínfimo sobre ínfimo, cor sobre cor que se degrada e
aperfeiçoa ao mesmo tempo no deslizar em contiguidade, em transições quase
imperceptíveis. (“Eram os vivos, não os mortos, que Quirke achava esquisitos.”
- Benjamin Black)
Não
é só a perspectiva do quadro dentro do quadro, do quadrado dentro do quadrado, descentrados, assim impondo novos centros, que
convoca a memória, mas a poética da cor que lhe subjaz que reanima e faz reviver
o passado, há tanto tempo já – tão longe e contudo tão perto, tão perto e
contudo tão distante. A flor da memória na superfície barrada de cores do
quadro, dos quadrados que citam formas anteriores, que estudam e reinventam, nos rectângulos dentro de rectângulos, noutras formas. Os lábios
afloram, suavissimamente, esse momento mágico da formação e do crescimento do cristal do tempo, de que
fala Gilles Deleuze no “cristal do tempo” captado em relação com os «germes» que o compõem nos filmes de Federico Fellini (2) – o momento que passa
sem darmos bem por ele, pelo tempo, pelos outros, por nós próprios, como se tudo
fosse permanecer assim, intacto, para sempre.
Como
eu percebo que ética e estética fossem a mesma coisa para Josef Albers (1888-1976), cujas
pinturas sobre papel estão em exposição no Centro de Arte Moderna da Fundação
Calouste Gulbenkian. Num extremo da exposição, quadros de artistas modernos
portugueses dialogam com os de Albers – em especial uma série de que pequenos
quadros de Amadeo de Souza-Cardozo. No extremo oposto, outras pinturas de
Albers desenham outras formas, mais estruturadas e definidas como formas embora
apenas desenhadas a partir das anteriores e sempre abstractas, com encaixes que as articulam e multiplicam
num espaço próprio, o de cada quadro, fora do espaço e do tempo comuns e também
por isso intemporais. Alguns quadros esboçam figuras em movimento, meros traços
que se cruzam e deslizam ao multiplicarem-se.
Estas coisas fazem
sentido e é preciso estarmos atentos para não as deixarmos passar por nós sem
dar por elas, até para não permanecermos restringidos ao "Quadrado Negro" de Kazimir Malevich (e às suas variações brancas e negras), que todos conhecem e comentam, de que estes quadrados de Albers partem. "Ainda aqui estou, vivo e descontente." (Manuel de Freitas)
Notas
(1) Cf. "Beau Séjour", de Manuel de Freitas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2003.
(2) Cf. Gilles Deleuze, in "L'image-temps", Les Éditions de Minuit, Paris, 1985, Capítulo IV (edição portuguesa "A Imagem-Tempo", Assírio & Alvim, Lisboa, 2006).
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