“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Um artista americano


        “Sombras da Escuridão”/”Dark Shadows” (2012) é o mais recente filme de um dos mais conhecidos e destacados realizadores do cinema americano contemporâneo, Tim Burton, que tem deixado de filme para filme a sua marca em histórias estranhas e personagens bizarras e fantásticas, definidas por uma diferença que lhes confere um lugar à parte em cada narrativa fílmica, que desse modo determinam e condicionam.
         Partindo de uma série televisiva dos anos 70, a figura que “Sombras da Escuridão” desenha na obra deste artista americano é a do vampiro, Barnabas Collins/Johnny Depp, que, em tal transformado há dois séculos, regressa inesperadamente em 1972 para o convívio dos descendentes da sua família, semeando a morte em sua volta e o espanto e o terror entre os seus. Sendo uma personagem tipicamente burtoniana, este Barnabas além de lançar a confusão vai ser confundido, ao descobrir no presente as mulheres que conhecera no passado, Angelique/Eva Green, a bruxa que o tornara vampiro, sob a forma de Angie, Josette, que por ele morrera, sob a figura de Victoria/Bella Heathcote.
        A arte superior de Tim Burton passa então por humanizar o temível vampiro contra uma desumanizada sociedade actual que ele seduz mas o rejeita, mesmo nos seus esforços de refazer o prestígio e a fortuna da família. E se, depois de regressado do túmulo onde jazera durante dois séculos, Barnabas se torna um assassino impiedoso de acordo com a sua vampiresca condição, ele quer apesar disso impor-se como ser mais humanizado do que aqueles que vai encontrar, cujos problemas procura resolver – ou agravar, no caso de Angie, a adversária, perversa concorrente. E quando descobre que quem pretensamente lhe queria substituir o sangue maligno afinal o sugava, a Dra. Júlia Hoffman/Helen Bonham Carter, mata-a impiedosamente.  
                     Dark Shadows          
            O filme move-se desde o início num universo gótico, de que parte e que transpõe para a actualidade, do que resulta um curioso contraste que a antiguidade da mansão em que vivem os descendentes da família vai tornar maior. Mas percebe-se também rapidamente que o ponto de partida narrativo limita os objectivos do cineasta, que noutros filmes terá conseguido contrastar mais e melhor as suas personagens em diferentes épocas e contextos. Mesmo assim, “Sombras da Escuridão” surge como um filme à altura do seu criador, que muito apropriadamente faz com que a cena pretérita do penhasco se repita de forma a que a fusão dos amantes se consume, dois séculos depois, com a vampirização de Victoria, enquanto a bruxa morre entregando ao vampiro, que rejeitara no passado e eroticamente seduzira no presente, um coração intacto retirado de um corpo que a partir do rosto se desfaz.
            Não creio que este “Sombras de Escuridão” seja, como se tem dito, um Tim Burton menor, já que com menoridades destas, como artista americano o seu realizador pode bem, pois lhes confere sempre não um mas vários toques pessoais, desde o tratamento das cores, pictórico e livre, contra o negrume a preto e branco do vampiro, como convém, se compreende mas não deixa de surpreender, mesmo se o filme em vários momentos se aproxima de uma figuração de banda desenhada, obviamente procurada e conseguida em termos fílmicos. É que o universo de Burton é sempre, como aqui volta a ser, um universo de fantasia com sabor de inventiva ilimitada, que leva a que se desfaçam em filme as sugestões feitas em termos narrativos, que são duplamente confirmadas e negadas por uma subversiva linha de humor. 
                      sexy Eva Green in a new character poster from Tim Burton's Dark Shadows              
         Cenograficamente o filme aguenta-se muito bem no gótico moderno, depois de a introdução do passado ter sido rapidamente arrumada, e as transições de planos dão-se sempre em termos espacialmente consistentes e conseguidos, que deixam espaço e tempo a que cada cena se cumpra até se esgotar. As personagens secundárias não passam disso mesmo, já que estão ali, como noutros filmes do cineasta, para preencher uma simples função narrativa e figurativa, o que cumprem como lhes compete e os actores obrigam. Mas o regresso final da vítima do vampiro lançada para as águas, voltada para a câmara e a piscar o olho, restabelece o tom de sátira a si próprio do último filme de Tim Burton.
        Não acrescenta nada de muito significativo à obra dele? Talvez não muito, mas alguma coisa em todo o caso, em termos de erotização, de inventiva das cores e de auto-paródia, embora talvez continuemos à espera do melhor de Burton que estava em “A Noiva Cadáver”/”Corpse Bride” (2005) e “Sweeney Todd – O Terrível Barbeiro de Fleet Street”/”Sweeney Todd” (2007). Não hesito, contudo, no caso deste artista americano em considerar que o pior filme dele, que nem sequer me parece ser o caso deste “Sombras da Escuridão”, será sempre preferível ao melhor filme da maioria dos realizadores que são responsáveis pela maioria da produção cinematográfica hollywoodiana da actualidade. Mesmo quando ele brinca e se parodia a si próprio, como aqui acontece, deixa atrás de si o rasto do seu génio pessoal, que lhe é próprio e toca tudo aquilo que ele faz.

Nota importante
Uma completa exposição "Tim Burton", que mostra a verdadeira dimensão do artista por ir muito para além do cinema, esteve em 2009 no MoMA, em New York, e está neste momento na Cinémathéque Française, em Paris (até 5 de Agosto). Será que coisas como esta, em vez de nos chegarem com a naturalidade que se impõe, vão continuar a funcionar como mais um estímulo para termos o gosto de atravessar fronteiras se quisermos assistir a elas?

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