“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 20 de maio de 2012

A grande fronteira


         “Era uma vez na Anatólia”/”Bir zamanlar Anadolu’da” (2011), o mais recente filme do turco Nuri Bilge Ceylan, é um filme extraordinário e perturbador de um cineasta que conhecíamos e estimávamos já desde as suas excepcionais primeiras longas-metragens, "A Pequena Cidade"/"Kasaba" (1997) e "Nuvens de Maio"/"Mayis sikintisi" (1999), ambas inéditas comercialmente em Portugal. 
        Abandonando a comodidade da cidade, por mais bela e atraente que ela seja, o cineasta embrenha-se na paisagem desértica da Anatólia em que um grupo de homens se arrisca a entrar em busca da sepultura de um homem que terá sido assassinado e aí enterrado. Esse grupo de homens vai confrontar-se entre si enquanto prossegue a sua busca e vai ser num cenário desértico mas majestoso que entre algumas personagens, o comissário, os seus homens, o procurador, o médico e o presumido assassino, se vai estabelecer uma teia de diálogos sobre o quotidiano, aquele caso e uma outra história passada trazida pelo procurador, que a vai discutir com o médico. Diálogos quase banais, quotidianos, provocados por circunstâncias concretas presentes e passadas, que vão contudo enveredar por um debate filosófico sobre os elementos mais importantes da própria vida humana. Uma noite e uma manhã na Anatólia vão tornar-se assim, primeiro no deserto, depois numa pequena aldeia, mais tarde na cidade, o cenário de diversas discussões que põem em causa a vida e a morte, o homem e a mulher, as gerações – portanto, o tempo – num espaço reduzido ao essencial mas com ressonância universal. Estamos ali como poderíamos, quiçá, estar na Grécia Antiga, ou numa época futura, ou hoje, a questionar-nos sobre o sentido que tudo isto faz a pretexto de encontrar um morto e saber como morreu. E quanto mais a morte, na sua presença física se torna presente, mais longe vamos avançando na discussão de questões corriqueiras e de questões centrais da nossa vida comezinha, questões insignificantes mas a que atribuímos a maior importância. Porque se vive? Porque se morre? Porque se mata? 
                       
          Como não é um cineasta dado a facilidades de qualquer espécie, Nuri Bilge Ceylan constrói o seu filme com base em longos planos fixos que não evitam os planos aproximados de rosto, concentrando-o nas personagens e nas palavras, nos diálogos que travam a partir de uma situação de acção rarefeita, em especial na primeira parte. Essa estratégia formal, que se vai prolongar até ao fim do filme, faz com que as personagens e os diálogos se imponham por si próprios a partir de elementos muito banais, e damos por nós próprios a estabelecer o contraste entre essas palavras e o cenário primitivo, primordial e desértico, como um início ou fim do mundo. E é no seu todo havido como trajecto em busca de um cadáver que "Era uma vez na Anatólia" faz lembrar a missão que é confiada a Bennie/Warren Oates em "Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia"/"Bring Me the Head of Alfredo Garcia", de Sam Peckinpah (1974), exemplar filme negro que constitui um dos cumes da obra do cineasta. Mas a semelhança, se é flagrante, acaba aí, pois o projecto de Nuri Bilge Ceylan prende-se menos com a acção do que com a reflexão, e uma pesquisa física transforma-se numa indagação sobre o ser humano, a natureza humana, cada uma das personagens e cada um de nós.
                            
           Sem pretender dar lições, antes partindo do muito concreto do caso e das vidas das suas personagens, mas também sem facilitar em nada a vida ao espectador, o cineasta deixa-nos abismados no abismar das suas personagens perante as suas próprias vidas, circunstâncias e interrogações. Alguém matou? Se sim, quem, como e porquê? (E todas as dúvidas ficam, apesar de tudo, a pairar sobre isto.) E no passado, alguém morreu de morte natural ou se matou? E porquê? E repare-se que tudo isto é discutido por personagens comuns no contexto de uma situação quotidiana embora especial, sem chamar em seu apoio o grande pensamento da grande filosofia do presente ou do passado, mas tornando-se pelo próprio cenário e contexto alguma coisa de universal e que nos interessa a todos em todo o lado, em qualquer época. Como na grande literatura, no grande cinema, debatemo-nos uns com os outros, com o nosso presente, a nossa memória – uma mulher presente, mulheres passadas, que os homens tendem a culpabilizar pelo que acontece, mulheres que raramente e em circunstâncias muito diferentes aparecem, o que faz com que o ausente se torne central e permite ao cineasta construir um filme imensamente audacioso e moderno que se abre para o mistério da vida, da morte, do mundo: o medo, a culpa, a solidão, a esperança, o vazio.
                           Era uma vez na Anatólia
             As lágrimas do procurador e do médico, que lhes deixam marcas negras na cara, não nos atingem, de tal maneira a construção do filme nos coloca como observadores não participantes, embora interessados dado o carácter extremo das circuntâncias. Dessa forma, aquele grupo (selvagem) torna-se o cadinho em que se consomem e transformam as vidas e as mortes, o presente, o passado e o futuro, tanto mais quanto alguém morreu sem se saber no final ao certo como (embora se suspeite), que alguém matou sem se saber ao certo no final quem e porquê (embora no filme sejam deixadas pistas) - sobre a morte passada atingem-se conclusões especulativas, tranquilizadoras. A culpa? A morte? A vida? Que cada um encontre para si próprio a sua própria resposta, como cada personagem do filme faz – como em Albert Camus, Ingmar Bergman, Alain Resnais, Julien Gracq. De resto, estamos e permanecemos todos tão sós e dependentes de circunstâncias tão fortuitas, que no filme poderemos rever-nos em qualquer personagem, incluindo o morto - embora essa não seja uma questão aqui central. E depois do fim não há mais nada que nos conforme, olhos secos e sem amargura ou mesmo melancolia que nos console, salvo a própria beleza deste filme, ela própria uma certeza redentora que nos cabe descobrir e construir, i. e., merecer.
            “Era uma vez na Anatólia” é um grande filme de um cineasta de enorme saber fílmico e humano, que serenamente nos faz pensar sem nos prometer certezas ou recompensas. Honra lhe seja! Este um filme que desafia o espectador emancipado de que fala Jacques Rancière (1), e que deve ser hoje em dia cada um de nós.
           Mas se Nuri Bilge Ceylan é o meu cineasta turco de eleição, como se deduz do que antecede, aproveito para lembrar a propósito dele o grande escritor turco contemporâneo Orhan Pamuk, Prémio Nobel da Literatura em 2006, um autor fascinante e largamente traduzido em português.

Nota
(1) Cf. “Le spectateur émancipé”, de Jacques Rancière, la fabrique éditions, Paris, 2008 (edição portuguesa “O espactador emancipado”, Orfeu Negro, Lisboa, 2010).

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