O
cinema é, como se sabe, um fenómeno essencialmente urbano, tanto pelas suas
origens como pelos desenvolvimentos da sua produção e distribuição comercial
(1).
Não significa isto que o cinema não
se tenha ocupado, e continue a ocupar, de outros meios, rurais, marítimos,
aéreos, subterrâneos, espaciais, tomando-os como meios humanos. Não é essa a
questão.
O problema está em que,
progressivamente, passada a fase dos "nickleodeons", e mau grado as
experiências de que há notícia, inclusivamente em Portugal, do "cinema
ambulante" (2), o cinema se implantou nas grandes cidades e aí obteve a
sua viabilização financeira, se tornou espectáculo e arte (3).
Fruto do desenvolvimento da
sociedade industrial do século XIX (4), o cinematógrafo dos irmãos Lumière
começou por ser mostrado a especialistas antes de ser divulgado publicamente
(5). Mas mesmo essa mítica primeira sessão pública teve lugar numa cidade
mítica entre todas as cidades europeias: Paris.
Mais do que isso, a implantação do
cinema como indústria nos Estados Unidos da América, que ocorre nos anos 10 do século XX,
em Hollywood, vai de par com uma cidade que ela implica e que
até hoje dela permanece indissociável: Los Angeles.
Mas os anos 10 assistem também, na
Europa, ao lançamento dos primeiros grandes estúdios de cinema, designadamente
da U.F.A. alemã, depois de todas as experiências anteriores, de maior ou menor
sucesso e dimensão, nomeadamente em Itália e em França (a segunda Invicta Film
é fundada no Porto no mesmo ano da UFA, 1917).
Pode, assim, dizer-se que o cinema
nasce e cresce como fenómeno urbano, e que, no seu desenvolvimento, vem a
originar cidades e "cidades" dentro da cidade, no interior das quais
outras ou as mesmas cidades são recriadas. Quando, nos anos trinta, são criados
em Itália os grandes estúdios cinematográficos, não por acaso eles são
denominados "Cinecittà".
Também as salas destinadas à
projecção de filmes se desenvolvem a partir dos anos dez, com a adaptação e/ou
a construção de vastas salas destinadas à projecção de filmes (6),
fenómeno este que se alarga rapidamente a todo o mundo civilizado.
Aliás, estes espaços específicos
para projecção de filmes viram-se alterados, nos anos sessenta, com a criação
das salas "estúdio", e, mais tarde, a partir dos anos oitenta, com a
passagem à integração de complexos multi-salas em grandes e novos espaços
comerciais (7).
Mas vai mais longe esta ligação, por
assim dizer umbilical, entre a cidade e o cinema. Narrativas e géneros,
personagens e situações típicas no cinema passam pela cidade. A ela se adequam,
por exemplo, o filme de gangsters e o filme policial, o filme de
realismo psico-social e a comédia musical, entre outros géneros de
manifestação precoce, nomeadamente no cinema americano.
A figura do gangster,
por exemplo, que tem apresentado uma perdurabilidade notável no cinema, é uma
figura eminentemente urbana, enquanto a figura do cow-boy é uma
figura eminentemente rural, mesmo quando ligada à fundação das primeiras
cidades do interior Oeste dos Estados Unidos da América.
Aliás, ao falarmos da cidade e o
cinema, não devemos esquecer as "margens" dela, sejam as margens
propriamente ditas, marítimas ou fluviais, sejam os subúrbios, que se
estenderam e estendem em volta das cidades por forma que as alarga e amplia, do
mesmo passo que as transforma.
Também não devemos esquecer a
topografia própria de cada cidade, seja-nos ela dada como produto da filmagem
da cidade real, seja ela recriada em estúdio para o efeito específico de vir a
ter uma existência fílmica.
Neste ponto convém mesmo sublinhar
que a cidade no cinema, seja ela qual for, seja ela real ou artificial, é
sempre uma cidade que passa a ter, pelo simples facto de ser filmada, uma
existência outra, fílmica. Ora na passagem da cenografia da cidade para o
fílmico vai todo um acto de criação, que consiste na criação de uma cidade
outra, de uma cidade nova e particular, que se caracteriza pelo seu carácter
fílmico, fruto da combinação da realidade dos cenários com o acto de
filmagem, com a posterior montagem e a final projecção.
A
cidade no cinema
Para além de ser um fenómeno essencialmente urbano, o cinema
é também um fenómeno da modernidade, de uma primeira modernidade que
explode nos primeiros 25-30 anos do século XX em resultado das transformações
artísticas que acompanham um desenvolvimento científico e tecnológico que, com o
tempo, o de todo o século passado, vai levar as sociedades desenvolvidas de um
estádio industrial a um estádio pós-industrial.
Deste modo, o cinema filma o seu
tempo, as cidades do seu tempo, designadamente, da mesma forma que filma o
passado das cidades em filmes históricos ou de época, e as cidades de outro tempo, passado ou futuro, e até de outro espaço-tempo,
que repetidamente antecipa e inventa na ficção científica (8).
Há assim, e desde logo, a grande cidade, a grande metrópole em que
as pessoas vêem a sua dimensão como que reduzida pelo contraste com os grandes
edifícios, e a pequena cidade, que
poderíamos chamar cidade de província, com a maior proximidade das relações
entre os seus habitantes. Teríamos, assim, a Nova Iorque de “A Multidão”/”The
Crowd” (1928), de King Vidor, de "Ele e Ela"/"Love Affair"
(1939), de Leo McCarey, e de "Vontade Indómita"/"The
Fountainhead" (1949), de King Vidor, e a Atlanta de "E Tudo o Vento Levou"/"Gone
with the Wind" (1939), de Victor Fleming e David O'Selznick, por exemplo;
ou as pequenas cidades de "Fargo" (1996) e de “O Barbeiro”/”The Man
Who Wasn’t There” (2001), ambos dos irmãos Joel e Ethan Coen, tal como as de inúmeros filmes do cinema independente americano. Ou, se quisermos, a Nova
Iorque de estúdio de “A Hora da Saudade”/”The Clock”, de Vincent Minnelli
(1945), e do musical do pós-guerra, quando o género sai dos estúdios com Stanley
Donen e Gene Kelly ("Um Dia em Nova Iorque"/”On The Town”, 1949, e "Dançando nas Nuvens"/"It's Always Fair Weather", 1955), posteriormente revisitada em “West
Side Story”, de Robert Wise e Jerome Robbins (1961), e “New York, New York”,
de Martin Scorsese (1977).
Será, aliás, curioso constatar que
as cidades "artificiais", de estúdio, se podem prestar a uma singular
reconstituição da cidade, seja no pormenor seja no grande espaço, como
frequentemente o filme policial e o filme de gangsters, por um
lado, o filme histórico ou de época, por outro, ou ainda o filme de terror,
demonstram. Ora se isso aconteceu e acontece deve-se à participação nos filmes
de grandes cenografistas com formação arquitectónica.
Coisa não muito diferente serão as
cidades do futuro, de que o grande paradigma continua a ser
"Metropolis" (1927), de Fritz Lang, e que só vem a encontrar rival,
décadas depois e já a cores, em "Perigo Iminente"/"Blade
Runner" (1983), de Ridley Scott.
Nestes casos verifica-se a exploração
de elementos arquitectónicos enquanto tais, sejam eles fruto da construção
cenográfica (de Otto Hunte, Erich Kettelhut e Karl Vollbrecht, com fotografia
de Karl Freund e Gunther Rittau, e efeitos especiais de Eugen Schufftan, no
primeiro caso) ou aproveitamento parcial de cenários reais de cidades reais (de
Lawrence G. Paull, com fotografia de Jordan Cronenweth e efeitos especiais de
Douglas Trumbull, no segundo). E quem nos diz hoje, quando esse futuro é em
grande parte presente, que não estamos perante a concretização de cidades
futuras, que em larga medida convivem com o passado das cidades, nem sempre sem
o prejudicar?
Distingam-se mais cidades:
marítimas, com rios ou lagos, interiores, de planície, de deserto, de montanha ou de vale.
Há aí toda uma variedade de circunstâncias espaciais que grandes cineastas
souberam aproveitar visual e narrativamente, de Alfred Hitchcock a Elia Kazan,
de David Lean a John Carpenter, de David Cronenberg a David Lynch. Poderia
ainda falar-se das cidades subaquáticas, subterrâneas e espaciais da ficção
científica.
Mas entre as cidades do futuro
contam-se as cidades apocalípticas, onde um fim do mundo perpassa pelas ruas e
os edifícios das cidades, como paradigmaticamente acontece com "Nova
Iorque 1997"/"Escape from New York" (1981) ou "Fuga de Los
Angeles"/"Escape from L. A." (1996), ambos de John Carpenter.
Este, aliás, um aspecto
particularmente interessante, que o recrudescimento da violência nas cidades
contemporâneas traz para a ordem do dia, e que se alarga à violência suburbana
ou àquela que acompanha frequentemente os grandes acontecimentos de massas ou
confrontos de grupo, o que acontece dos filmes de Walter Hill aos de Mathieu
Kassovitz, dos de Martin Scorsese aos de John McTiernan, dos de Abel Ferrara
aos de Quentin Tarantino (9).
Existem também as cidades reais,
normais ou devastadas, como as de Roberto Rossellini em "Roma Cidade Aberta"/"Roma,
città aperta" (1945) e em "Alemanha Ano Zero"/"Germania
anno zero" (1947), ou a de José Ernesto de Sousa em "Dom
Roberto" (1961), e as cidades construídas com recurso a cenografias mais
ou menos audaciosas, com utilização ou não de efeitos digitais, como as de
"Eduardo Mãos de Tesoura"/"Edward Scissorhands" (1990) e as
dos dois primeiros "Batman", em especial
("Batman"/"Batman", 1989, e "Batman
regressa"/"Batman returns", 1992), de Tim Burton – mais
recentemente a Paris de cenografia digital de “A Invenção de Hugo”/”Hugo”
(2011), de Martin Scorsese, em 3D.
Repete-se: novas ou antigas,
presentes ou futuras, as cidades no cinema são sempre fílmicas, em que a um
efeito de realidade se alia na recepção um inevitável efeito fantomático que as reifica, efeitos esses combinados em
proporções de acordo com a inspiração e os propósitos de cada cineasta.
(continua)
Notas
(1) Cf. Georges Sadoul, in "Histoire du Cinéma Mondial", Flammarion,
Paris, 1958 (edição portuguesa "História do Cinema Mundial", Livros
Horizonte, Lisboa, 1983). Cf. também Noel Burch, in "La Lucarne de l'infini -
Naissance du langage cinématographique", Nathan, Paris, 1991. Cf. ainda de Michael Chanan, "Economic Conditions of
Early Cinema", e de Janet Staiger, "Combination and Ligation -
Structures of US Film Distribution 1896-1917", ambos in "Early Cinema:
space, frame, narrative", edited by Thomas Elsaesser with Adam Barker, British Film Institute, London,
1990.
(2)
Cf. Michael Chanan, citado na nota 1, e, para Portugal, Luís de Pina, in
"Panorama do Cinema Português
(das origens à actualidade)", Terra Livre, Lisboa, 1978.
(3)
Cf. Noel Burch, citado na nota 1, e Michael Chanan, também citado na nota 1.
(4)
Cf. Noel Burch, citado na nota 1.
(5)
Cf. Henrique Alves Costa, in "A longa caminhada para a invenção do Cinematógrafo",
Cineclube do Porto, Porto, 1988, e Laurent Mannoni, in “Le grand art de la
lumière et de l’ombre: archéologie du cinéma”, Nathan, Paris, 1995 (edição
brasileira “A grande arte da luz e da sombra – Arqueologia do cinema”,
SENAC/UNESP, São Paulo, 2003).
(6)
Cf. Georges Sadoul, citado na nota 1, e Noel Burch, também citado na nota 1. Para
Portugal, cf. Alves Costa, in "Os antepassados de alguns cinemas do
Porto", Instituto Português de Cinema/Cinemateca Nacional, Lisboa, 1975;
M. Felix Ribeiro, in "Os mais antigos cinemas de Lisboa 1896-1939",
Instituto Português de Cinema/Cinemateca Nacional, Lisboa, 1978; José-Augusto França, in "Os anos vinte em Portugal - Estudo de factos sócio-culturais",
Editorial Presença, Lisboa, 1992, Segunda Parte, Capítulo III, "O país «a
saque»", págs. 267/268, e, em
especial, Terceira Parte, Capítulo VI, "Cinema e cinéfilos".
(7)
Isto sem esquecer os cinemas ao ar livre, em moda nos Estados Unidos desde os
anos cinquenta. Mas há que ter também presentes as modificações
entretanto verificadas no circuito de distribuição de filmes, primeiro com o
vídeo, depois com o DVD.
(8)
E aqui outras figuras se tornam visíveis no cinema de ficção científica, que
partem do astronauta e vão até às sagas do futuro ou do passado, até outros planetas ou
sistemas – e estou a pensar nas bizarras cidades da saga de “A Guerra das Estrelas”/”Star
Wars”, de George Lucas, da qual estão concluídos seis episódios, quatro dos
quais dirigidos por ele.
(9)
Sobre a violência no cinema, numa perspectiva interessante, veja-se, de Olivier Mongin, "La Violence
des Images ou comment s'en debarrasser?", Éditions du Seuil, Paris, 1997
(edição portuguesa "A violência das imagens ou como eliminá-la?",
Editorial Bizâncio, Lisboa, 1998). Mais recente e muito curioso é “Violência e
Cinema – Monstros, Soberanos, Ícones e Medos”, de Luís Nogueira, Universidade
da Beira Interior, Covilhã, 2002.
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