“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 12 de agosto de 2012

Começar de novo

      "A Árvore da Vida"/"The Tree of Life" (2011), a justificadamente aguardada quinta longa-metragem de Terrence Malick, o mais raro dos cineastas americanos da sua geração, é um filme inesperado e excelente. Partindo, como sempre, de argumento seu, o cineasta ocupa-se de uma família americana numa pequena cidade do Texas durante os anos 50 do século XX, um motivo temático muito comum no cinema americano dessa mesma década de 50, nomeadamente no melodrama, que ele trata de forma pessoal e superior, de tal maneira que coloca em questão não apenas as personagens em situação mas também a sua evolução no tempo.
       Dita esta palavra, tempo, entramos de pleno no cinema de Malick, embora aqui de uma maneira nova e inesperada na obra dele. Filho de Mr. e Mrs. O'Brien (Brad Pitt e Jessica Chastain), Jack vai ser acompanhado em dois momentos diferentes, enquanto jovem (Hunter McCracken) e enquanto adulto (Sean Penn), e vai ser deste acompanhamento diacrónico que nasce a construção narrativa do filme. Não, esta história nunca tinha sido contada antes, nem desta nem de outra maneira, de modo que com este filme o cineasta reinventa-se a si próprio e reinventa o cinema.
                    
       De facto, num prólogo seguimos o monólogo interior de Mrs. O'Brien aquando da morte de um filho, questionando Deus a esse respeito, e o monólogo interior de Jack adulto questionando-se sobre o seu afastamento de Deus. Só que isto acontece enquanto se sucedem diferentes imagens da natureza (com os seus quatro elementos e os seus diversos animais, mesmo pré-históricos) e da Terra, do cósmico ao microscópico, a que as vozes se sobrepõem, o que vem dar a esse início um tom de mistério, de inexplicável, e faz com que no filme desde aí, à semelhança dos outros filmes do cineasta, se estabeleça uma dual narrativa subjectiva indirecta livre.
        Vamos, deste modo, parar ao que Pier Paolo Pasolini definiu como "cinema de poesia" (1), e posteriormente Gilles Deleuze na esteira dele estudou a partir do uso da "subjectiva indirecta livre" (2), enquanto estamos perante uma espécie de caótico cosmos natural. Por pouco não julgamos que com esse questionamento de Deus está a terminar o filme. Enganamo-nos, porém, se tal pensarmos, pois é depois dessa primeira meia-hora que "A Árvore da Vida", afinal mais felliniano do que kubrickiano, se vai instalar temporalmente nos anos 50, na casa dos O'Brien, de onde, aliás, partira mais tarde com a chegada da notícia da morte de um dos filhos, recebida pela mãe - Jessica Chastain está excelente em todo o filme, desde esse início.
                    The Tree of Life
         Durante essa parte, a mais longa do filme, seguimos sempre que possível o ponto de vista de Jack criança e adolescente, o que sugere a recordação do Jack adulto, que o regresso a este no final confirma. Na casa de família acompanhamos três momentos distintos: primeiro, a família com a presença de Mr. O'Brien, com a sua própria encenação da sua autoridade, um tempo durante o qual o jovem Jack se confronta com a imaginária morte da mãe, com a morte de um outro rapaz (o que introduz a pulsão de morte), com a fúria paterna; depois, durante a viagem paterna, a família sem ele, com uma outra liberdade de convívio que vai permitir que desperte em Jack alguma coisa que ele desconhecia (o que estabelece a pulsão sexual); por fim, com o regresso do pai ele vai descobrir que deseja a sua morte, que o que quer fazer não pode fazer, que faz o que lhe desagrada (o que insinua a frustração), para depois se aproximar do irmão mais novo e do pai, após o despedimento deste. Aliás, o motivo temático da morte está presente desde o início do filme, com a morte do outro irmão, já adulto, aquele que durante a infância e a adolescência é o menos mostrado.              
          O percurso de Jack vai assim ser estabelecido para um passado em que encontra as suas raízes e que lhe permite reconhecer-se, na recordação de um convívio familiar partilhado, que é mostrado (e a reconstituição de época, sendo simples é muito boa), rumo a uma compreensão interior, que se vai materializar num final simbólico mas não cósmico, como durante o prólogo, em que ele reencontra tal como eram as personagens da sua casa nos anos 50, incluindo-se a si próprio. Ora este final simbólico assume uma conformação de relação directa com Deus, ao qual a mãe, presumivelmente então já morta, oferece o seu próprio filho, embora a última imagem do filme remeta brevemente para o enigma cósmico do início.
                   The Tree of Life
           Poderei identificar em "A Árvore da Vida" as características do cinema de Terrence Malick que já identifiquei aqui (ver "Poética de Terrence Malick", 5 de Fevereiro de 2012), nomeadamente quanto a um percurso para as origens, quanto à integração na natureza e à desregulação desta - aqui passada na separação entre humanos e a natureza no prólogo, no próprio meio familiar depois -, quanto à inserção de planos de pormenor de espaços vazios e quanto a uma poética de carácter musical, até porque a música propriamente dita acompanha quase todo o filme ao ponto de se notar quando ela se suspende no momento em que pela primeira vez Jack encara a morte do pai, mas também no que respeita a um elaborado trabalho fílmico: movimentos de cãmara e montagem. Devo, contudo, notar que neste filme o cineasta se socorre mais da montagem de planos menos longos, o que condiciona e determina o tratamento do tempo, estabelece a musicalidade do filme mesmo em termos visuais e faz parte do encanto dele. Além disso, os movimentos de câmara são menos amplos do que nos seus filmes anteriores, pois pela primeira vez ele remete-se ao espaço de uma casa e respectivo quintal no interior do espaço de uma pequena cidade - e a cidade vista a partir dos olhos dos habitantes da casa está muito bem dado.
        Duas coisas supreendem em especial: Mr. O'Brien nunca é ouvido em pensamentos, mediante um monólogo interior semelhante ao da mulher e ao do filho, talvez por ser a personificação da autoridade e do poder, e a única revolta de todo o filme é a do filho contra o pai, não havendo em qualquer momento revolta declarada contra Deus, que é apenas questionado por mãe e filho no início e por ambos aceite no final. Assim, sublimada no pai humano a revolta do filho (e até em parte a da mãe), o lugar do Pai celeste fica disponível para que nele se concentre a proposta deste filme, por entre questionamentos e angústias pessoais moldada sobre um Édipo freudiano, em que a morte do terceiro irmão (presumivelmente na Guerra do Vietname) é colocada logo no início para funcionar plenamente como morte simbólica de substituição - exemplar a liberdade temporal de todo o filme. O que, sendo feito de boa-fé e sem ambiguidades, deve ser devidamente apreciado num filme todo ele de muito grande qualidade, até porque esse lado religioso, se conforta também inquieta o protagonista. Esse o mistério da "árvore da vida", que o filme encena e propõe de forma superior - a partir de uma citação do "Livro de Job".

Notas
(1) Cf. Pier Paolo Pasolini, "O «cinema de poesia»" (1965), in "Empirismo eretico", Garzanti, Milão, 1972 - edição portuguesa "Empirismo hereje", Assírio & Alvim, Lisboa, 1982, pág. 137. Sobre literatura, ver também "Intervenção sobre o Discurso Indirecto Livre", idem, ibidem, pág. 63.
(2) Cf. Gilles Deleuze, "L'Image-mouvement", Les Éditions de Minuit, Paris, 1983, páginas 104-111.

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