"Chelsea Hotel" (2009), um excelente documentário sobre o mítico hotel novaiorquino onde Andy Warhol (1928-1987) filmou o mítico (e pouco visto até porque não é fácil de projectar) "The Chelsea Girls" (1966), foi o último filme de Abel Ferrara a estrear entre nós, apesar de depois dele o cineasta ter feito mais dois filmes: "Napoli, Napoli, Napoli" (2009) e "Mulberry St." (2010). O seu mais recente filme, "4:44 Último Dia na Terra"/"4:44 Last Day on Earth" (2011), agora estreado, volta a passar-se em New York, cidade onde nasceu, e é uma obra revigorante e muito bela sobre o fim do mundo, que foi tema de super-produções apocalípticas aqui há uns anos, pois desenrola-se a maior parte do tempo entre um casal fechado em casa, cujo contacto com o mundo se resume a um televisor através do qual lhe chegam as notícias, opiniões e comentários do exterior.
Salvo no fim, e mesmo assim muito parcimoniosamente, o cineasta não se sente sequer tentado a encenar a catástrofe final, no caso com razões ecológicas. Muito pelo contrário, são as reacções de gente comum, habitantes comuns de New York que o interessam e motivam, as reacções ao anúncio, com hora e tudo, do fim do mundo. Não espanta, por isso, que o filme seja sobre um casal no interior do seu apartamento, sujeito às pequenas/grandes crises habituais nos dias que correm numa grande cidade, o que é um tema que Ferrara como tal, e separadamente, ainda não tinha tratado - embora, com motivações dramáticas precisas, "Linha de Separação"/"Dangerous Game" (1993) e "R Xmas - Nosso Natal"/"R Xmas" (2001), sejam precedentes de vulto e as relações homem-mulher sejam em geral importantes em toda a sua obra.
Com actores excepcionais dirigidos superiormente, Willem Dafoe como Cisco, actor, e Shanyn Leigh como Skye, pintora, o filme coloca-nos diante das reacções comuns de gente comum, sem encenar o histerismo de massas com que o cinema de Hollywood não se cansa de nos bombardear, o que transforma aquele último dia de vida, antes do fim anunciado, num dia mais de vidas que se debatem nas suas pequenas e grandes questões quotidianas, que são as questões próprias dos dias de hoje numa grande metrópole, repito. Todavia, Ferrara faz o protagonista sair de casa passados 50 minutos do início do filme, e mesmo antes disso fizera-o sair para o terraço e ter, desse modo, contacto com o mundo exterior na cidade, contacto esse que permitira que o espectador o estabelecesse também.
Sem querer ver no filme o que nele não está, parece-me que o cineasta volta a filmar a sua cidade a partir do interior, como fizera em "Chelsea Hotel", não de forma especulativa ou turística mas para lhe sentir o pulso, a respiração, que ele bem conhece, e os partilhar connosco. Assim, para Skye o fim do mundo parece ser quando interrompe a conversa de Cisco com a ex-mulher via Skype, enquanto para ele o que surge como despedida é a visita que faz a um amigo, acompanhado por outros amigos em sua casa, o que é pretexto para um pitoresco diálogo afectivo e significa também que parte considerável do filme passa pelas palavras, as dos diálogos das personagens e as que lhes chagam através da televisão. Por seu lado, em vez de ser mostrado em directo na televisão, o fim do mundo dá-se quando ela cessa de transmitir.
Mas como o cineasta é um grande cineasta, o segredo do filme está, em larga medida, no modo como ele o realiza, no tratamento dos espaços e das personagens no interior desses espaços, interiores ou exteriores - e é uma sensação espantosa ver Dafoe andar, caminhar pelas ruas de New York como se estivesse num filme de John Cassavetes. Além disso, o cineasta não recua nas cenas de intimidade do casal, o que lhe fica muito bem e os actores suportam perfeitamente, de modo a transformá-las em momentos cassavetianos, a partir dos rostos. E há ainda cenas de grande intensidade dramática entre o casal e dois momentos, o último quase no final do filme, em que Ferrara assume com brio a profundidade de campo no interior do apartamento, o que dá perfeitamente conta de que ele é um cineasta invulgar.
Há também os comentários que surgem no televisor, nomeadamente de Al Gore e do Dalai Lama, que são bem escolhidos para uma ocasião como aquela com aquele pretexto, mas o que sabe especialmente bem em "4:44 Último Dia na Terra" é ser um excelente filme em termos cinematográficos e humanos, puro e duro Abel Ferrara que nos devolve ao contacto com um dos melhores cineastas americanos da actualidade, hoje em dia o grande cineasta de New York, e também ao contacto com Willem Dafoe, que desde "New Rose Hotel" (1998) e, especialmente, "Histórias de Cabaret"/"Go Go Tales" (2007) assume nos seus filmes a figura e o tom de um actor cassavetiano como foi Ben Gazzara (1930-2012) continuando a ser ele próprio - Shanyn Leigh é, por sua vez, uma excelente surpresa. A banda sonora, incluindo a música, contribui de forma importante para a tensão urbana e apocalíptica do filme, sem contrariar a sua violenta carga humana, a que pelo contrário inteiramente se adequa.
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