Recentemente estreado, o documentário "É Na Terra Não É Na Lua", de Gonçalo Tocha (2007-2011), é um filme ambicioso que cumpre com brio tudo aquilo que se propôs: filmar tudo e todos na Ilha do Corvo, nos Açores.
Tratando-se de uma ilha muito pequena com uma população muito reduzida, 400-450 pessoas, tornava-se necessário que o realizador com a sua equipa procurasse guardar as distâncias possíveis e se aproximasse muito daquilo e daqueles que filmava sempre que tal se revelasse adequado. Além disso, tornava-se necessário filmar os diferentes lugares com os respectivos habitantes e/ou frequentadores, filmar as diferentes actividades, que não são muitas, e especialmente fazer seus os diferentes pontos de vista dos habitantes sobre a sua ilha, a sua realidade.
Graças a uma longa permanência no Corvo e a um trabalho persistente, Gonçalo Tocha conseguiu ganhar a confiança da população local, o que é indispensável nestas condições, criar laços pessoais com cada um dos habitantes de maneira a que cada um deles acedesse a confiar-se à sua equipa de filmagens, composta por ele e o técnico de som. Deste modo, o realizador faz da senhora que, em sua casa, faz trabalhos de malha e conversa com ele o centro do seu relacionamento e do filme, de um modo que dir-se-ia ser exemplar para o próprio trabalho do filme, que se vai desenvolvendo a pouco e pouco, por aproximações sucessivas, mas sempre a partir de dentro, do interior da própria ilha, de que nunca saímos a não ser para o mar.
Dividido em 14 capítulos, com um prólogo e um epílogo (último capítulo), "É Na Terra Não E Na Lua" acompanha os habitantes na natureza, com o gado e na pesca, nas ruas e largos da vila, nos interiores e no que a partir deles se pode ver, na estrada, no ciclo do leite, no matadouro, na discoteca, etc. Desse modo, acedemos à realidade da terra e das suas gentes, a uma vivência particular da insularidade que acaba por torná-la inteiramente central, por exemplo quando mostra a rica vegetação local, de um tipo a que no continente só temos acesso em jardins botânicos (aliás muito bons), ou os turistas que visitam a ilha por causa de uma ave que têm notícia de só ali existir.
Além disso, a religião ocupa no filme um lugar que conserva junto da população mais velha, embora seja mostrado também um baptizado - os mais novos estão na discoteca -, a política local merece o devido relevo, com as críticas feitas ao poder regional e ao poder central e as propostas para o futuro, as aspirações culturais, que se centram na criação de um espaço multiusos, surgem já na parte final, jogando, aliás, com as imagens, fotográficas e de um ensaio, da filarmónica local. Mas o universo da ilha, que é também e inevitavelmente concentracionário, como é próprio de um ambiente fechado num meio pequeno, o que as imagens do porto, com as suas cargas e descargas, o baptismo de uma lancha, e as imagens do aeroporto vêm sublinhar - os contactos com o exterior são escassos -, e o espantoso monólogo de um homem verbaliza em termos muito claros no final de um capítulo, o capítulo 12, que começara numa lixeira (o capítulo anterior fora inteiramente preenchido por um homem que pesca num barco), o universo da ilha, dizia, tem facetas de uma espantosa beleza na natureza, na terra e no mar, no céu e nas nuvens, na noite e na lua, no entardecer.
Aí são surpreendentes as imagens da chuva, na vidraça da casa ou no vidro do carro, das sombras das nuvens que correm sobre a estrada, a que se vai seguir a chuva, como das sombras da rocha na falésia ou da própria equipa de filmagens, como são de uma estarrecedora beleza as imagens das ribeiras que caem da falésia sobre o mar depois da chuva, rivalizando na natureza com as memórias da história do final da baleia e da Vigia da Baleia, com as histórias da imagem da santa e da estátua. Mas há também as imagens dos homens mais velhos da ilha, o mais velho dos quais toca mesmo acordeão, as imagens dos homens que conversam no interior da taberna, na rua, num largo, das mulheres que trabalham, por exemplo na queijaria, que se envolvem na política, que trabalham em casa ou se reunem na igreja.
Quero, contudo, chamar a atenção para a breve cena no matadouro, muito bem resolvida em termos sonoros, e para as cenas da matança do porco e do nascimento de um vitelo, que dão uma característica cor local ao meio e à vivência da população. Mas também para a maneira como, em certas circunstâncias - o homem mais velho, a senhora que faz malha, as mulheres na igreja - o realizador resolve as situações com planos aproximados do rosto, mesmo dos olhos, e das mãos, permitindo-se aí muito justamente quebrar qualquer distância. Mesmo no exterior, mostra os dedos que tocam, os pés que caminham.
Em "É Na Terra Não É Na Lua" há música, canções populares, uma lição de canto e um pianista a tocar, e há sobretudo momentos em que com grande pertinência e oportunidade são mostradas fotografias, que quebram o movimento, no final mesmo recortes legíveis de jornais, assim como há momentos em que, filmada de cima, a vila parece uma maqueta, momentos assombrosos como a subida ao ponto mais alto, no Caldeirão - movimento ascendente que contrasta com a queda da água das ribeiras do alto da falésia -, um homem a correr pelos campos, um barco que baloiça no mar, momentos de silêncio entre personagens imóveis sobretudo próximo do fim, tudo enquadrado pela aproximação de barco à ilha, vista do mar, pela perspectiva, as perspectivas do mar visto da terra, pelas aproximações ao porto.
Uma pequena ilha que não tinha uma memória escrita, como é dito na parte final do filme, passa assim a contar, graças a Gonçalo Tocha, com uma memória fílmica inteiramente conseguida, digna e fidedigna (embora inevitavelmente incompleta), que não esquece o passado próximo, o século XX, nem o passado distante, do tempo da descoberta da ilha pelos navegadores portugueses. Este documentário é um filme precioso de um muito jovem realizador, que vem reafirmar que o documentarismo português atravessa uma fase muito boa. O próprio cineasta gere muito bem a participação da sua própria voz e da voz do técnico de som, Dídio Pestana, o diálogo que estabelecem e a informação adicional que proporcionam, o que torna ainda mais importante a sua criação deste filme.
Algumas imagens em pose de mulheres, meninas e homens, breves palavras sobre a inevitabilidade da morte, a oferta do boné feito à malha com cinco agulhas, amplamento merecido, e depois é o fim deste filme belíssimo sobre o tempo que passa, o tempo que já passou na Ilha do Corvo, no arquipélago dos Açores, que nele fica, decantado, para memória futura.
Tratando-se de uma ilha muito pequena com uma população muito reduzida, 400-450 pessoas, tornava-se necessário que o realizador com a sua equipa procurasse guardar as distâncias possíveis e se aproximasse muito daquilo e daqueles que filmava sempre que tal se revelasse adequado. Além disso, tornava-se necessário filmar os diferentes lugares com os respectivos habitantes e/ou frequentadores, filmar as diferentes actividades, que não são muitas, e especialmente fazer seus os diferentes pontos de vista dos habitantes sobre a sua ilha, a sua realidade.
Graças a uma longa permanência no Corvo e a um trabalho persistente, Gonçalo Tocha conseguiu ganhar a confiança da população local, o que é indispensável nestas condições, criar laços pessoais com cada um dos habitantes de maneira a que cada um deles acedesse a confiar-se à sua equipa de filmagens, composta por ele e o técnico de som. Deste modo, o realizador faz da senhora que, em sua casa, faz trabalhos de malha e conversa com ele o centro do seu relacionamento e do filme, de um modo que dir-se-ia ser exemplar para o próprio trabalho do filme, que se vai desenvolvendo a pouco e pouco, por aproximações sucessivas, mas sempre a partir de dentro, do interior da própria ilha, de que nunca saímos a não ser para o mar.
Dividido em 14 capítulos, com um prólogo e um epílogo (último capítulo), "É Na Terra Não E Na Lua" acompanha os habitantes na natureza, com o gado e na pesca, nas ruas e largos da vila, nos interiores e no que a partir deles se pode ver, na estrada, no ciclo do leite, no matadouro, na discoteca, etc. Desse modo, acedemos à realidade da terra e das suas gentes, a uma vivência particular da insularidade que acaba por torná-la inteiramente central, por exemplo quando mostra a rica vegetação local, de um tipo a que no continente só temos acesso em jardins botânicos (aliás muito bons), ou os turistas que visitam a ilha por causa de uma ave que têm notícia de só ali existir.
Além disso, a religião ocupa no filme um lugar que conserva junto da população mais velha, embora seja mostrado também um baptizado - os mais novos estão na discoteca -, a política local merece o devido relevo, com as críticas feitas ao poder regional e ao poder central e as propostas para o futuro, as aspirações culturais, que se centram na criação de um espaço multiusos, surgem já na parte final, jogando, aliás, com as imagens, fotográficas e de um ensaio, da filarmónica local. Mas o universo da ilha, que é também e inevitavelmente concentracionário, como é próprio de um ambiente fechado num meio pequeno, o que as imagens do porto, com as suas cargas e descargas, o baptismo de uma lancha, e as imagens do aeroporto vêm sublinhar - os contactos com o exterior são escassos -, e o espantoso monólogo de um homem verbaliza em termos muito claros no final de um capítulo, o capítulo 12, que começara numa lixeira (o capítulo anterior fora inteiramente preenchido por um homem que pesca num barco), o universo da ilha, dizia, tem facetas de uma espantosa beleza na natureza, na terra e no mar, no céu e nas nuvens, na noite e na lua, no entardecer.
Aí são surpreendentes as imagens da chuva, na vidraça da casa ou no vidro do carro, das sombras das nuvens que correm sobre a estrada, a que se vai seguir a chuva, como das sombras da rocha na falésia ou da própria equipa de filmagens, como são de uma estarrecedora beleza as imagens das ribeiras que caem da falésia sobre o mar depois da chuva, rivalizando na natureza com as memórias da história do final da baleia e da Vigia da Baleia, com as histórias da imagem da santa e da estátua. Mas há também as imagens dos homens mais velhos da ilha, o mais velho dos quais toca mesmo acordeão, as imagens dos homens que conversam no interior da taberna, na rua, num largo, das mulheres que trabalham, por exemplo na queijaria, que se envolvem na política, que trabalham em casa ou se reunem na igreja.
Quero, contudo, chamar a atenção para a breve cena no matadouro, muito bem resolvida em termos sonoros, e para as cenas da matança do porco e do nascimento de um vitelo, que dão uma característica cor local ao meio e à vivência da população. Mas também para a maneira como, em certas circunstâncias - o homem mais velho, a senhora que faz malha, as mulheres na igreja - o realizador resolve as situações com planos aproximados do rosto, mesmo dos olhos, e das mãos, permitindo-se aí muito justamente quebrar qualquer distância. Mesmo no exterior, mostra os dedos que tocam, os pés que caminham.
Em "É Na Terra Não É Na Lua" há música, canções populares, uma lição de canto e um pianista a tocar, e há sobretudo momentos em que com grande pertinência e oportunidade são mostradas fotografias, que quebram o movimento, no final mesmo recortes legíveis de jornais, assim como há momentos em que, filmada de cima, a vila parece uma maqueta, momentos assombrosos como a subida ao ponto mais alto, no Caldeirão - movimento ascendente que contrasta com a queda da água das ribeiras do alto da falésia -, um homem a correr pelos campos, um barco que baloiça no mar, momentos de silêncio entre personagens imóveis sobretudo próximo do fim, tudo enquadrado pela aproximação de barco à ilha, vista do mar, pela perspectiva, as perspectivas do mar visto da terra, pelas aproximações ao porto.
Uma pequena ilha que não tinha uma memória escrita, como é dito na parte final do filme, passa assim a contar, graças a Gonçalo Tocha, com uma memória fílmica inteiramente conseguida, digna e fidedigna (embora inevitavelmente incompleta), que não esquece o passado próximo, o século XX, nem o passado distante, do tempo da descoberta da ilha pelos navegadores portugueses. Este documentário é um filme precioso de um muito jovem realizador, que vem reafirmar que o documentarismo português atravessa uma fase muito boa. O próprio cineasta gere muito bem a participação da sua própria voz e da voz do técnico de som, Dídio Pestana, o diálogo que estabelecem e a informação adicional que proporcionam, o que torna ainda mais importante a sua criação deste filme.
Algumas imagens em pose de mulheres, meninas e homens, breves palavras sobre a inevitabilidade da morte, a oferta do boné feito à malha com cinco agulhas, amplamento merecido, e depois é o fim deste filme belíssimo sobre o tempo que passa, o tempo que já passou na Ilha do Corvo, no arquipélago dos Açores, que nele fica, decantado, para memória futura.
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