O título do último filme de Gus Van Sant, "Inquietos"/"Restless" (2011), é por si mesmo um programa, que sinaliza o regresso do cineasta ao melhor da sua inspiração e inteligência fílmica depois do biopic "Milk" (2008), um filme compreensível por tratar de uma personagem, Harvey Milk, que lhe diz alguma coisa de especial mas em que se nota demasiado a sua preocupação de fazer bem feito e à altura daquele que homenageia. "Inquietos" é outra coisa, pois aí o cineasta regressa às personagens jovens e em perda dos seus melhores filmes, mas num regresso superior pois enfrenta sem paliativos a condenação à morte por cancro na cabeça de Annabel Cotton/Mia Wasikowska, que conhece Enoch Brae/Henry Hooper num funeral, numa época em que, depois da morte dos seus próprios pais e de ter ele próprio estado morto durante três minutos, ele se dedica ao passatempo de assistir a funerais.
Declarado, deste modo, à partida um propósito fúnebre e funesto a propósito de personagens muito novas, o filme avança ao ritmo do desenvolvimento da relação entre Annie e Enoch, que se vão revelando um ao outro a pouco e pouco, até atingirem uma relação de amizade e cumplicidade que passa pelo conhecimento de que ela tem três meses de vida e de que ele tem uma amigo fantasma/fantasiado, Hiroshi Takahashi/Rio Kase, que fora piloto kamikaze japonês durante a II Guerra Mundial e é na actualidade com quem ele conversa e joga à batalha-naval. Ela considera-se naturalista e é uma grande admiradora de Charles Darwin, ele entra no jogo dela depois de lhe ter apresentado os pais, mortos, e procura fazer-lhe uma boa companhia.
Com um desenlace anunciado pouco depois do seu início, "Inquietos" dá, assim, conta da inquietação vital dos seus dois jovens protagonistas, admiráveis de serenidade ao apaixonarem-se um pelo outro, ele admirável na sua revolta contra o médico, ela admirável ao encenar com ele o momento e consequências da sua própria morte.
O que para mim neste momento é mais assinalável é que estes dois apaixonados criam a sua própria luz pessoal, que os vai acompanhar e manter até ao fim - contrariamente ao pai e filha de "O Cavalo de Turim"/"A Torinói ló", de Béla Tarr, que não conseguiam acender a sua, e tal como os O'Brien de "A Árvore da Vida"/"The Tree of Life", de Terrence Malick, que nunca deixavam extinguir a deles (ver "Nas trevas interiores", 29 de Junho de 2012, e "Começar de novo", 12 de Agosto de 2012). Ora essa luz é uma luz fundamental, criadora e animadora até ao fim, sem a qual, dê-se-lhe o nome que se lhe der, amor, fé ou outro, não se pode viver, o que Gus Van Sant mostra compreender perfeitamente e transmite com grande felicidade - no final, a lareira na casa da tia de Enoch. É mesmo a falta dessa luz indispensável que torna o filme de Béla Tarr mais interessante e expressivo no seu sombrio negrume a preto e branco.
Além disso, a experiência de ter estado morto e ter visto o nada é algo que já Alain Resnais tratara de forma superior em "Amor Eterno"/"L'Amour à mort" (1984), é uma antecipação da experiência que Annie sem regresso vai ter e justifica alguns dos melhores momentos do filme entre Enoch e Hiroshi. De facto, no contexto de "Inquietos" este último é uma personagem que vem acentuar todo o lado fúnebre e fantomático do filme, salientando permanentemente que a vida é uma experiência sem retorno a não ser como fantasma e prevenindo os vivos de que devem fazer em vida tudo o que tiverem para fazer, mesmo mandar as cartas que tiverem para mandar, o que ele não chegou a fazer antes da sua última missão.
A sombra que deste modo sobre o filme e as suas personagens paira transmite-se inteira, na sua inquietação inconformada, aos espectadores, que secundam Enoch no seu amor, na sua revolta e na sua oferta final de um xilofone, mesmo se infantil. Tantas coisas que se podem fazer em três meses! A morte de alguém muito novo é sempre inescapavelmente injusta, apesar do que sobre ela escreveu Rainer Maria Rilke - "os que os deuses amam morrem cedo" -, mas aqui quero chamar a atenção para uma personagem de "Unknown Pleasures"/"Ren xiao yao", do chinês Jia Zhang-ke (2002), que questiona se vale a pena viver depois dos 30 anos, questão moderna que nos vem da literatura do século XIX no Ocidente e no cinema dos modernos do pós-guerra - viver depressa e morrer cedo, como James Dean e Marilyn Monroe. Certamente não por acaso, por momentos os corredores do hospital fazem lembrar os de "Elephant" (2003), mostrando que Gus Van Sant não dorme nem nos dá tréguas. A fotografia de Harris Savides, a música, com escolhas excelentes e muito apropriadas, de Danny Elfman, e a montagem de Elliot Graham, que estavam presentes em "Milk" (os dois primeiros colaboradores de longa data do cineasta), conferem um reconhecível tom de família a um filme em que, tal como no anterior, o realizador trabalha sobre um argumento que não é seu - neste caso, de Jason Lew - sem perder por tal facto nada da sua autoria e sem que "Inquietos" perca nada da sua superior qualidade.
Além disso, a experiência de ter estado morto e ter visto o nada é algo que já Alain Resnais tratara de forma superior em "Amor Eterno"/"L'Amour à mort" (1984), é uma antecipação da experiência que Annie sem regresso vai ter e justifica alguns dos melhores momentos do filme entre Enoch e Hiroshi. De facto, no contexto de "Inquietos" este último é uma personagem que vem acentuar todo o lado fúnebre e fantomático do filme, salientando permanentemente que a vida é uma experiência sem retorno a não ser como fantasma e prevenindo os vivos de que devem fazer em vida tudo o que tiverem para fazer, mesmo mandar as cartas que tiverem para mandar, o que ele não chegou a fazer antes da sua última missão.
A sombra que deste modo sobre o filme e as suas personagens paira transmite-se inteira, na sua inquietação inconformada, aos espectadores, que secundam Enoch no seu amor, na sua revolta e na sua oferta final de um xilofone, mesmo se infantil. Tantas coisas que se podem fazer em três meses! A morte de alguém muito novo é sempre inescapavelmente injusta, apesar do que sobre ela escreveu Rainer Maria Rilke - "os que os deuses amam morrem cedo" -, mas aqui quero chamar a atenção para uma personagem de "Unknown Pleasures"/"Ren xiao yao", do chinês Jia Zhang-ke (2002), que questiona se vale a pena viver depois dos 30 anos, questão moderna que nos vem da literatura do século XIX no Ocidente e no cinema dos modernos do pós-guerra - viver depressa e morrer cedo, como James Dean e Marilyn Monroe. Certamente não por acaso, por momentos os corredores do hospital fazem lembrar os de "Elephant" (2003), mostrando que Gus Van Sant não dorme nem nos dá tréguas. A fotografia de Harris Savides, a música, com escolhas excelentes e muito apropriadas, de Danny Elfman, e a montagem de Elliot Graham, que estavam presentes em "Milk" (os dois primeiros colaboradores de longa data do cineasta), conferem um reconhecível tom de família a um filme em que, tal como no anterior, o realizador trabalha sobre um argumento que não é seu - neste caso, de Jason Lew - sem perder por tal facto nada da sua autoria e sem que "Inquietos" perca nada da sua superior qualidade.
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