Continuando na Europa, depois de "Tudo Pode Dar Certo"/"Whatever Works" (2009), rodado em New York, e "Vais Conhecer o Homem dos Teus Sonhos"/"You Will Meet a Tall Dark Stranger" (2010), filmado em Londres, Woody Allen realizou "Meia-Noite em Paris"/"Midnight in Paris" (2011), com argumento seu como costuma acontecer, um filme surpreendente que não parece rimar com nada na sua obra mas de uma enorme imaginação sobre... a viagem no tempo.
Não fazendo as coisas por menos, ele faz o protagonista, Gil Pender/Owen Wilson, um aspirante a escritor de viagem a Paris com a noiva e os seus pais, ir ao encontro da "geração perdida" da literatura americana na Cidade Luz, o que é um bom pretexto pois os anos 20 do século XX foram de facto uma época de grande efervescência artística na Europa, em geral, e na capital francesa em especial. Ao cumprir essa viagem involuntária no tempo, o aspirante a escritor não só encontra o que, quem não procurara conscientemente (Cole Porter, Ernest Hemingway, F. Scott e Zelda Fitzgerald, Gertrud Stein, Pablo Picasso, Luis Buñuel, Man Ray, Salvador Dali, entre outros), como encontra a resposta para os seus problemas: o livro que está a escrever, a noiva que não o quer - nem ele a ela.
Como uma cinderela, à meia-noite Gil entra no carro que o transporta ao convívio de alguns dos mais importantes e famosos escritores e artistas do século passado, que ele apenas conhecia, como apenas podia conhecer, por os ter lido, ouvido, visto as suas obras na pintura ou no cinema. Assim, ele encontra aquela que é para ele a Idade de Ouro e nela quem considere a época anterior, a Belle Époque, a verdadeira Idade de Ouro - Adriana/Marion Cotillard, com quem a essa época vai aceder para aí encontrar Toulouse-Lautrec, Paul Gauguin, Edgar Degas e o french cancan. Ora com este pretexto o cineasta questiona o tempo, questiona-se e questiona-nos sobre o tempo com grande pertinência, pois todos vivemos sempre a ilusão de um passado perdido como a miragem inalcansável e incomparável, que tomamos como ponto de referência, o que se compreende pois partimos sempre do que conhecemos, do que foi feito antes de nós.
A época é muito bem escolhida, pois foi decisiva para a modernidade na literatura, nas artes e no cinema, podendo por isso ser legitimamente vista como a Idade de Ouro do século XX, ainda mais para um americano culto, como Woody Allen é. Assim, o contexto do protagonista na actualidade é um simples pretexto para nos levar a uma época mítica, muito bem recriada com precisão e humor (a rivalidade sentimental, a ideia dada por Gil a Buñuel), que não esconde a nostalgia, de um modo que leva a que os momentos no passado surjam como um musical, que a própria música (Cole Porter) desde o início introduz, e por isso também como um sonho. Aliás, esta viagem no tempo tem muito que ver com a saída do filme de uma personagem e a entrada nele de uma espectadora em "A Rosa Púrpura do Cairo"/"The Purple Rose of Cairo" (1985), com cada um acedendo ao mundo que lhe suscita curiosidade e interesse.
Portanto, Woody Allen está aqui no seu melhor de inspiração e atrevimento, deixando pelo caminho as suas farpas na política americana, muito claramente embora de passagem, pois o que mais chama a atenção no filme é o passado, apesar de haver momentos muito bons na actualidade, como a cena típica dos brincos desaparecidos, que não deve ser esquecida. Mas é o passado que surge como fonte de inspiração e de luz para o protagonista, que dela muito precisa e a vai acabar por encontrar, e que é para onde cada um de nós deve "viajar" na sua procura pessoal ou pelo que se deve deixar encontrar. Aliás, o cinema americano tem frequentado com regularidade a Europa com bons resultados, e é bom não esquecer que a geração da literatura americana aqui em causa teve uma enorme influência no cinema americano e no cinema mundial, até porque foi a primeira geração posterior ao nascimento do cinema, cuja influência ela própria recebeu, e também porque soube conviver com as outras artes, os outros artistas do seu tempo, assim contribuindo para a criação de um "ar do tempo", de um "clima intelectual de época".
O filme vê-se de um fôlego e sofregamente, pois percebe-se desde a primeira viagem que estamos a assistir a uma verdadeira surpresa, capaz de nos fazer sair a todos da fase de negação. "Meia-Noite em Paris" é "mais um pequeno Woody Allen"? Não, "Meia-Noite em Paris" é mais um grande Woody Allen, surpreendente e quase comovedor na sua simplicidade e na sua sabedoria. De uma Idade de Ouro todos precisamos, tanto mais quanto os tempos são hoje incertos, mas interessará perguntar se no futuro o tempo que vivemos não será ele também considerado como tal. E aí penso que o tempo de Woody Allen será no futuro considerado uma época de referência no cinema, como o foi o tempo de Charles Chaplin - e não forço em nada a comparação, que nem sequer sou o primeiro a fazer.
Nota
Sobre a aprendizagem de um escritor, é fundamental "Fogos"/"Fires", do americano Raymond Carver (1938-1988), agora editado em português.
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