Os presos políticos, que personificaram a oposição e a resistência ao regime ditatorial e fascista que governou Portugal durante 48 anos, de 1926 a 1974, encontraram em "48", de Susana de Sousa Dias (2010), uma cineasta inteiramente à altura para recolher num documentário as suas fotografias de cárcere juntamente com depoimentos pessoais, simples e directos, sobre a sua experiência de sujeição a torturas tremendas por parte polícia política, de cidadãos de um estado em que as mais elementares liberdades democráticas eram recusadas, os mais elementares direitos humanos desprezados. Penso que havia esta dívida do cinema português para com esses portugueses exemplares, de grande fibra, que não se vergaram nem desistiram ao longo de décadas, uma dívida que só um documentário com a dignidade e a qualidade cinematográfica que este filme tem poderia alguma vez pagar.
A opção pelas fotografias de prisão, feitas a preto e branco durante o seu encarceramento, revela-se uma opção justa e com o maior impacto, pois retira qualquer veleidade de reconstituição outra que não seja a das palavras, que justamente as fotografias convocam. A este respeito, o cinema tem sempre a possibilidade, ocasionalmente explorada, do filme de ficção, que se sente, em geral, na obrigação de tudo mostrar e, portanto reconstituir visualmente. A grande secura da opção de Susana de Sousa Dias é também a sua ousadia, pois concentra toda a atenção do filme nos rosto e nos olhos dos presos nas fotografias, que não mentem e falam por si, e nas palavras que as acompanham sem serem mostrados na actualidade os autores dos depoimentos, do que resulta a maior emoção mesmo quando as vozes tentam a neutralidade. Assim, a dignidade do filme acompanha eticamente a dignidade daqueles que mostra e faz ouvir, retirando o maior partido da natureza indicial da fotografia.
Porque hoje muitos, sobretudo os mais novos, desconhecem esta realidade do Estado Novo, da ditadura portuguesa, e também porque se verifica na actualidade uma tentativa de apagamento, de rasura da memória colectiva a vários níveis, era urgente que este filme fosse feito, recolhendo imagens e depoimentos. As torturas - do sono, da estátua, entre outras -, os choques eléctricos, a pancada, o isolamento, a humilhação, a tortura física, psicológica e moral de homens e mulheres ao ponto de chegarem a preferir a morte ou a loucura, tudo por que os presos políticos passaram na prisão está aqui documentado por aqueles que são os únicos que o podem testemunhar por o terem vivido, o terem sofrido, que falam também sobre os torcionários que o inflingiram. Em certos casos, diferentes fotografias tiradas aquando de diferentes prisões dão visualmente a noção da passagem do tempo. As referências ao clima social e político do tempo da ditadura, à guerra colonial e à Revolução de Abril, que pôs fim à ditadura e à guerra colonial, surgem com naturalidade no decurso dos depoimentos, que por vezes envolvem várias gerações.
Não tenhamos dúvidas em reconhecer nas imagens e nas palavras deste filme o rasto e os rostos dos comunistas portugueses, que encabeçaram o maior movimento de oposição e resistência clandestina ao regime. Com um grande rigor e um grande respeito por aqueles que mostra e ouve, Susana de Sousa Dias fez um filme com imagens de arquivo e com depoimentos vivos de protagonistas conhecidos destas andanças pelo século XX português que merece ser visto e divulgado para que se cumpra o seu propósito: recolher e transmitir as memórias do horror, para que o esquecimento não caia sobre elas e sobre aquilo e aqueles que estiveram na sua origem.
Nestas coisas não se pode transigir, como a cineasta não transige, nem facilitar, como a cineasta não facilita. O preto e branco das fotografias, a ausência de cor e de música, o fechar a negro do ecrã entre depoimentos estão lá justamente para isso: não transigir nem facilitar. O penúltimo depoimento, sobre Angola, fundamental por permitir entrever a extensão do horror, decorre mesmo na sua maior parte sobre um ecrã negro, por momentos cortado por breves pontos luminosos, pois não puderam ser conservados os arquivos da polícia política. Aquela foi a realidade em toda a sua crueza, uma parte dela inevitavelmente mas muito significativa, de que os portugueses presentes e futuros devem ter conhecimento para a compreenderem e poderem apreciar a crueldade de uns, a resistência, o sofrimento e o sacrifício pessoal dos outros. Agora é preciso ver "48", divulgá-lo e comentá-lo, pensar nele e não o esquecer, para que a história não se repita sob nenhum pretexto, muito menos o do desconhecimento.
Sem qualquer forma de ilusionismo do tipo que o cinema permite, e a que convida, de olhos secos e coração pesado este é um filme exemplar de um modo sério, sereno e eficaz, que é também moderno, de fazer documentário. O filme que o assunto sem dúvida merecia e exigia, com o cinema no seu melhor de rigor e exigência, à altura daqueles que grava e mostra, de que conserva intacta a autenticidade do testemunho e a enorme dignidade humana.
"48", de Susana de Sousa Dias é, por tudo isto, um grande filme político, que pensa e nos obriga a pensar. Pelo seu carácter de testemunho pessoal apresenta um enorme interesse para a História de Portugal, que vai ter que levá-lo em consideração em toda a sua dimensão política. Além disso, é muito possível que decorram ainda hoje por todo o mundo situações semelhantes às aí descritas, pelo que a divulgação internacional do filme se impõe também.
Nota
Sobre o fascismo, como reconhecê-lo e preveni-lo, tem muito interesse o breve ensaio "O Eterno Retorno do Fascismo", de Rob Riemen (Bizâncio, Lisboa, 2012 - a edição original em neerlandês é de 2010).
Sem qualquer forma de ilusionismo do tipo que o cinema permite, e a que convida, de olhos secos e coração pesado este é um filme exemplar de um modo sério, sereno e eficaz, que é também moderno, de fazer documentário. O filme que o assunto sem dúvida merecia e exigia, com o cinema no seu melhor de rigor e exigência, à altura daqueles que grava e mostra, de que conserva intacta a autenticidade do testemunho e a enorme dignidade humana.
"48", de Susana de Sousa Dias é, por tudo isto, um grande filme político, que pensa e nos obriga a pensar. Pelo seu carácter de testemunho pessoal apresenta um enorme interesse para a História de Portugal, que vai ter que levá-lo em consideração em toda a sua dimensão política. Além disso, é muito possível que decorram ainda hoje por todo o mundo situações semelhantes às aí descritas, pelo que a divulgação internacional do filme se impõe também.
Nota
Sobre o fascismo, como reconhecê-lo e preveni-lo, tem muito interesse o breve ensaio "O Eterno Retorno do Fascismo", de Rob Riemen (Bizâncio, Lisboa, 2012 - a edição original em neerlandês é de 2010).
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