Alain Cavalier foi outro dos cineastas que, contemporâneos da nouvelle vague
francesa, nunca tiveram nada a ver com ela (ver "Duro de roer", 10 de
Junho de 2013). Tendo enveredado por um tipo de filme mais pessoal,
subjectivo mesmo, já neste século, a partir de "Le filmeur" (2005),
chega a um seu pleno desenvolvimento em "Pater" (2011), embora "Irène"
(2009) seja o melhor dos seus últimos filmes.
De facto, é aí que, a solo,
ele se entrega a um exercício sobre a memória de Irène Tunc que, muito
mais nova do que ele, muito nova morreu na sequência de um acidente de viação em 1972. O que torna este filme
superior aos outros é nele o cineasta, ao abrir a memória, abrir as
agendas em que escreveu um diário da vida comum de ambos entre 1970 e
1972, e, ao filmar e ler o que então aí escreveu, ir desdobrando as suas
memórias mais pessoais e íntimas de uma personagem há muito desaparecida para as comentar na actualidade.
Para fazer tudo como deve ser e como ele quis, Alain Cavalier fez aí tudo sozinho, captação da imagem, do som, voz-off,
mostrando-se mesmo a si próprio, primeiro partes do corpo, depois o rosto, a
seguir à sua queda nas escadas de uma estação de Metro de Paris. Foi um
risco muito grande, o de uma exposição completa, mas um risco que se
justificava porque a sua subjectividade o exigia e que o levou a criar um filme em que reverbera a presença actual de
uma morta querida.
Em "Irène" assume plena dimensão o cinema como arquivo de memória
mas também, e até sobretudo, como construtor dela - da própria Irène surgem escassas fotografias já próximo do final, por vezes o cineasta parece dirigir-se a uma fotografia de Sophie Marceau sobre uma parede e num determinado momento surge uma outra mulher muito
nova que, na actualidade, ele encara como podendo vir a
interpretar Irène num filme. De resto, são as imagens dos locais em que ela
viveu, em que eles os dois viveram juntos, as palavras em dois tempos:
as escritas em vida dela, as ditas na actualidade do filme pelo
cineasta (a palavra lisível, lida, e a palavra dita, acrescentada), imagens novas que mostram o que ele diz - espantosa a sequência da melancia - e o regresso de diferentes pontos de vista ao local de que ele
a viu partir pela última vez, que assinala a culpa que ainda sente por naquele dia a ter deixado partir sozinha.
Posto isto, em que só vendo se acredita como Alain Cavalier
acreditou, "Irène" é, depois de "Teresa"/"Thérèse" (1986), a verdadeira
obra-prima do cineasta, em que ele faz o que mais ninguém fez daquela
maneira, que é simultaneamente a mais verdadeira e a mais difícil,
levando até ao fim a sua própria subjectividade e criando com ela. Em "Pater" há já uma
ideia muito consciente de mise en scène de se próprio numa relação pai-filho,
mestre-discípulo enunciada em termos políticos, que por muito que possa
dizer aos franceses a mim me deixa frio, quase indiferente como exercício de estilo narcísico, pese embora a reflexão que apesar de tudo proporciona.
Sem comentários:
Enviar um comentário