Natural do País Basco, Victor Erice é um grande cineasta espanhol, que realizou três longas-metragens memoráveis, "O Espírito da Colmeia"/"El espíritu de la colmena" (1973), "O Sul"/"El sur" (1983) e "O Sonho da Luz, o sol do marmeleiro"/"El sol del membrillo" (1992), este uma verdadeira obra-prima do tratamento do espaço, do tempo e da criação pictórica. Depois ficámos sem notícias dele. Tive ocasião de assistir na Cinemateca Portuguesa a três dos filmes que ele aí apresentou: "Allumbramiento", curta-metragem feita para o filme "Ten Minutes Older: The Trumpet" (2002), em que figura com o título "Lifeline", e "La Morte Rouge (Soliloquio)", feito no âmbito da exposição "Erice-Kiarostami. Correspondences" que, organizada por Alain Bergala, esteve em Barcelona, Madrid e Paris em 2006 e de que apenas conhecia o catálogo, com direcção de Bergala e Jordi Balló.
No primeiro ele estabelece uma surpreendente relação com o alastrar do nazismo antes da II Guerra Mundial e no segundo recorda o seu primeiro contacto com o cinema, com uma sala de cinema, com um filme projectado, recordando o ambiente da época e o filme então visto e como ele o marcou, mas também como ele lhe permitiu descobrir que há um país do cinema que não vem nos mapas. Ambos a preto e branco, são filmes muito bons, que trazem a marca inconfundível de um grande cineasta, mas se fosse só por eles não estaria a escrever isto neste momento.
Ora Erice mostrou também, como surpresa, o seu segmento para "Centro Histórico" (2012), uma encomenda da Guimarães - Capital Europeia da Cultura cujos outros três segmentos são da responsabilidade de Manoel de Oliveira, Pedro Costa e Aki Kaurismäki e que permanece inexplicavelmente inédito. E nesse filme, "Vidros Partidos", sim, a cores temos de novo o sabor do melhor de Erice, o das suas longas-metragens já antigas, pois ele filma, num dispositivo devedor de "24 City"/"Er shi si cheng ji" do chinês jia Zhang-Ke (2008) mas muito bem adoptado e adaptado, os testemunhos de operários e operárias desempregados devido ao encerramento de uma fábrica da indústria têxtil do Vale do Ave.
O cineasta explicou como recolheu primeiro os testemunhos, os transcreveu e depois os fez decorar a cada um dos operários para as filmagens. Os testemunhos de vidas de trabalho desde cedo é impressionante, mas o que a mim mais me impressionou foi o cenário de cada depoimento ter por fundo uma grande fotografia a preto e branco, tirada no refeitório da mesma fábrica numa data indeterminada. O filme encerra com os comentários de alguns dos operários entrevistados a essa fotografia, então mostrada em contracampo, enquanto o mais novo dos entrevistados, que já fez um curso superior e toca acordeão, faz ouvir uma música inspirada na "Trova do vento que passa", de Adriano Correia de Oliveira. E então um filme que é todo ele sobre o tempo e a memória exorbita e vai juntar-se ao melhor de Victor Erice, naqueles rostos anónimos que nos olham do abismo do tempo em que as suas imagens foram retidas.
Posto "Vidros Partidos" como a amostra mais recente do génio pessoal de um grande cineasta, a que aqui presto a minha homenagem, há que exigir a divulgação integral de "Centro Histórico", que pelos nomes que nele estão envolvidos, além do próprio Victor Erice, deve ser realmente um filme memorável, que é criminoso não mostrar.
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