Num país em que é quase completamente desconhecido o maior cineasta israelita, Amos Gitai, como são pouco ou nada conhecidos grandes nomes da filosofia e mesmo da literatura contemporâneas, estreou com alarido um bom filme da mesma proveniência sem que ninguém tenha acusado o toque da grande ignorância em que somos indignamente mantidos do melhor daquela cinematografia. Se a ideia de distribuidoras e programadores é punir a política sionista do Estado de Israel estão completamente enganados, pois Amos Gitai, um dos nomes maiores do cinema contemporâneo, homenageado no Centro Georges Pompidou, em Paris, e no MOMA - Museum of Modern Art, em New York, está longe de contemporizar com ela, movendo-se a um nível de dignidade intelectual comparável ao do seu compatriota Amos Oz, escritor . E, enquanto esta situação miserável, semelhante àquela que, no seu tempo, atingiu entre nós o egípcio Youssef Chahine, persistir, eu escrevo sobre filmes israelitas sob protesto, embora ela seja uma situação que nem sequer me espanta num país que, de um modo geral e na melhor das hipóteses, encara como simples curiosidade macróbia um cineasta como Manoel de Oliveira.
Dito isto, "Noiva Prometida"/"Lemale et ha'halal" (2012), até agora o único filme de Rama Burshtein, argumentista e realizadora, que o dedica à memória do seu marido, é uma obra muito interessante sobre uma família judia ultra-ortodoxa em que a morte da mulher ao dar à luz levanta o problema do segundo casamento do marido viúvo. Considerando a natureza fechada da comunidade em que as personagens se inserem, está em causa "arranjar-lhe um casamento".
Poderia pensar-se que não temos nada a ver com isso, é o problema deles, não se dera o caso de, em termos narrativos e em termos fílmicos, a cineasta resolver muito bem o seu filme de uma forma e num tom em que, naquela comunidade ultra-ortodoxa, ninguém sequer põe em causa que se arrange um novo casamento daquele homem. De facto, o que ali ressalta é a ideia proposta de a segunda mulher dele... ser a irmã mais nova da primeira.
Para além de a comunidade em causa estar muito bem caracterizada, em todas as suas práticas religiosas e sociais, inextrincavelmente ligadas, cada personagem assume identidade e vida própria, de tal modo que torna perfeitamente identificável e reconhecível o problema que o filme equaciona. Os afectos transbordantes tendem a abafar qualquer ideia de autonomia pessoal, que os próprios visados nem sequer reivindicam. Ao que acresce o perfeito domínio do filme pela realizadora, com as recorrentes desfocagens parciais a conferirem um carácter pictórico mas também afectivo à imagem e o uso da música só no início e no final.
Sem pretenciosismo mas com completa intransigência, Rama Burshtein constrói "Noiva Prometida" como um filme comovedor na sua simplicidade e no seu bom gosto, em que o universo feminino assume o comando das operações e os cânticos masculinos exprimem também a solidão dos homens - belíssima a triste canção final. Um filme de tal modo concebido e construído que, na sua aparente singularidade religiosa, assume ressonância universal.
Amos Gitai é sionista,ele é a favor do Estado de Israel?
ResponderEliminarAmos Gitai responde, ele próprio, a essa e muitas outras questões, em
Eliminar"Amos Gitai - Architecte de la mémoire" (Paris, Gallimard/La Cinémathèque française, 2014).