Passeava, despreocupado e jovem, pelo Jardim Botânico, em volta e por trás da Faculdade de Ciências de Lisboa, numa tarde soalheira de Primavera. Despreocupado, sem cuidar de mim cuidava do que me rodeava, sem cuidar do que me rodeava cuidava de mim. Este era o meu passeio habitual, de todos os dias, sem sonhos nocturnos nem fantasmas pessoais.
Como todos os dias, por entre o vazio do jardim àquela hora encontrei sentado num banco um senhor de óculos de aros de metal e de bigode. Nunca me preocupei em perguntar às pessoas com quem me cruzava na minha juventude como se chamavam nem em declinar-lhes o meu nome, que supunha todos conhecerem.
O senhor sentado num banco, de óculos de aros de metal e bigode, manteve-se na mesma posição, perna traçada e olhando em frente com a cabeça ligeiramente inclinada, como se lesse um jornal que não tinha nas mãos. Àquela hora, pensei para comigo, não devia ser o Fernando Pessoa, que estaria na Rua dos Douradores no seu trabalho de amanuense. Também não seria um dos outros em que ele divagava, presos como ele dentro de si mesmo.
Continuei o meu caminho, eu que ando sempre em frente sem me preocupar em olhar para trás ou de través, simples curioso ocioso da minha juventude. Mais à frente fui surpreendido por ver o mesmo senhor de óculos de aros metálicos e de bigode sentado num outro banco do jardim, mais abaixo. Se não era ele era muito parecido, e isto não costumava acontecer. Abrandei o passo e tornei-me mais atento perante este princípio de proliferação. Este novo senhor de óculos de aros metálicos e de bigode, partindo do princípio de que não era o mesmo, tinha as pernas descruzadas e a cabeça inclinada para baixo, de modo que nem me terá visto quando passei por ele.
Intrigado, uma vez chegado ao fundo do Jardim Botânico voltei para trás, tentando percorrer exactamente o mesmo caminho, agora em sentido inverso. Andado um bocado, num banco diferente num lugar diferente o mesmo senhor de óculos de aros metálicos e bigode sentava-se num outro banco, agora direito e tenso, olhando impaciente para o relógio. Outros jovens como eu desciam em sentido contrário ao que eu seguia e riam, alegres e despreocupados.
Continuei a subir em direcção á saída, atento e vigilante a uma nova aparição do senhor de óculos de aros metálicos e bigode. Em sentido contrário dirigiu-se então ao meu encontro, apressada, uma mulher alta e esguia, de cabelo longo e negro - de um negro lutuoso. Se não fosse aquela ideia de que o outro estaria àquela hora no escritório da Rua dos Douradores, ter-lhe-ia perguntado se se chamava Ofélia. Em vez disso, apontando para o pulso perguntei-lhe as horas e ela, sem abrandar o passo, respondeu-me que se chamava Isabel e seguiu em frente.
Com a idade divago muito, penso que ainda estou vivo e que o Antonio Tabbuchi morreu, de maneira que geram-se estas confusões no meu espírito. Saio a porta do Jardim Botânico, atravesso e desço a rua em frente, em direcção à casa onde ninguém me espera já. Ao entrar a porta olho para o espelho e nele reconheço o senhor de óculos de aros de metal e bigode.
Percebendo de imediato, desço rapidamente as escadas e dirijo-me ao meu quarto em Campo de Ourique, onde de pé, pela noite dentro escrevo febrilmente sobre a cómoda. Até que a luz subitamente se apaga e eu acordo de repente.
"Para Isabel" (Lisboa, Dom Quixote, 2014) é o novo livro, inédito póstumo de Antonio Tabucchi que, com o devido agradecimento à Maria José de Lencastre, recomendo vivamente, pois trata-se de um grande escritor cada vez mais vivo que de há muito admiro e a que auguro um grande futuro.
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