O grande, com Raoul Ruiz o maior cineasta do tempo, Alain Resnais (!922-2014) foi o continuador inventivo de Orson Welles, cuja inspiração levou para novos, problemáticos caminhos.
Tendo começado no cinema com o documentário de curta-metragem, Resnais filmou toda a memória do mundo em "Les statues meurent aussi" (co-Chris Marker, 1953), "Toute la mémoire du monde" (1956), como filmou a arte em "Van Gogh" (1948), "Guernica" e "Gauguin" (1950), "Goya" (1951), e a memória do Holocausto, pela primeira vez e de forma exemplar em "Noite e Nevoeiro"/"Nuit et brouillard" (1955). Já aí, no depois denominado filme-ensaio a sua questão foi o tempo, a memória, o pensamento.
A partir do seu primeiro filme de ficção, "Hiroshima, Meu Amor"/"Hiroshima mon amour" (1959), com argumento de Marguerite Duras, também sobre a memória da II Guerra Mundial, encetou uma caminhada pelos tempos da vida, pelas vidas no tempo, sem se alhear do seu próprio tempo, antes elaborando sobre ele. Seguiram-se "O Último Ano em Marienbad"/"L'année dernière à Marienbad" (1961), com argumento de Alain Robbe-Grillet, de quem esteve muito próximo, "Muriel ou O Tempo de um Regresso"/"Muriel ou Le temps d'un retour" (1963), "A Guerra Acabou"/"La guerre est finie" (1966), com argumento de Jorge Semprún, e "Amo-te, Amo-te"/"Je t'aime, je t'aime" (1968), com argumento de Jacques Sternberg. Destes foi "O Último Ano em Marienbad" o filme decisivo por remeter para diferentes camadas do tempo a partir das quais as personagens exemplarmente se replicam, encontram e desencontram: a mulher, o marido, o amante. E no paradoxo assim construído residiu um mistério que antecipava e replicava o de "La Jetée", de Chris Marker, 1962 (ver "Poética de Chris Marker, 2 de Agosto de 2012), e que iria ser aprofundado no mergulho no tempo de "Amo-te, Amo-te".
Nos anos 70, depois de "Stavisky, o Grande Jogador"/"Stavisky" (1974), o seu filme aparentemente mais "normalizado", foi decisivo "Providence" (1977), com argumento de David Mercer, em que com grandes actores de língua inglesa (Dirk Bogarde, John Gielgud, Ellen Burstyn, David Warner, Elaine Stritch) se dedicou ao desdobramento e alteração do mundo pela criação literária, narrativa. Aí alguma coisa de fundamental se passa, e passa-se na cabeça do escritor, velho e alcoolizado, que permite compreender integralmente a referência de Gilles Deleuze a Alain Resnais como autor de um "cinema do cérebro".
Com o passar do tempo, em "O Meu Tio da América"/"Mon oncle d'Amérique" (1980), baseado em Henri Laborit, e "A Vida é Um Romance"/"La vie est un roman" (1983), com argmento de Jean Gruault, Alain Resnais
dedicou-se às camadas estratigráficas do tempo de um modo resolutamente
novo, que quebrava qualquer tentativa de linearização simplória, para depois, em "Amor Eterno"/"L'amour à mort" (1984), de novo com argumento de Jean Gruault, e "Mélo" (1986), a partir de peça de Henri Bernstein, com grande concentração espacio-temporal, mesmo influência teatral, se confrontar com os limites entre a vida e a morte.
No final dos anos 80 assumiu explicitamente a influência e o seu gosto da banda-desenhada em "Quero Ir Para Casa"/"I Want to Go Home" (1989). Estava então definido o grupo de actores que, depois de Emmanuelle Riva, Delphine Seyrig, Yves Montand, Ingrid Thulin, Geneviève Bujold, Claude Rich, Jean-Pierre Belmondo, Gerard Dépardieu, Nicole Garcia, Vittorio Gassman, Geraldine Chaplin, Fanny Ardent, Micheline Presle, o iriam acompanhar até ao fim: Sabine Azéma, Pierre Arditi, André Dussolier, mais tarde Lambert Wilson. Com os dois primeiros empreendeu o díptico "Fumar"/Não Fumar"-"Smoking"/"No Smoking" (1993), a partir de peça do inglês Alan Ayckbourn, em que, levando-o até ao fim, desdobrou e descreveu um mapa interactivo de "caminhos que bifurcam", e esse terá sido - filmado em estúdio, o que aumentou o seu lado teatral - o seu melhor filme desde a última década do Século XX, durante a qual fez ainda "É Sempre a Mesma Cantiga"/"On connait la chanson" (1997), com argumento de Jean-Pierre Bacri e Agnès Jaoui, em que investiu o musical.
Já no Século XXI, insistiu no musical em "Nos lábios não"/"Pas sur la bouche" (2003) e voltou aos seus inícios em "Corações"/"Coeurs" (2006), de novo a partir de peça de Alan Ayckbourn, e "As Ervas Daninhas"/"Les herbes folles" (2009), baseado em novela de Christian Gailly, o último dos seus filmes que conheço (ver "No topo", 15 de Janeiro de 2012). Pouco antes de morrer, recebeu no Festival de Berlim de 2014 o importante Urso de Prata Alfred Bauer pelo seu último filme "Aimer, boire et chanter" (2014), mais uma vez baseado em peça de Alan Ayckbourn - o seu penúltimo filme, "Vous n'avez encore rien vu" (2012), baseia-se em peças de Jean Anouilh, e o teatro marca uma presença importante na sua obra desde "Amor Eterno" e "Mélo".
Capaz do mais declarado humor ("É Sempre a Mesma Cantiga", "Nos lábios não") como da mais inesperada inspiração ("Quero Ir Para Casa"), sempre com uma dignidade exemplar Alain Resnais soube estar e permanecer atento ao mais paradoxal da vida humana. Influenciado pela cultura inglesa, no labiríntico desdobrar do tempo e das idades da segunda metade do Século XX e do início do XXI ele foi uma figura maior do cinema francês e do cinema mundial, que com o seu génio pessoal acrescentou e engrandeceu. Contemporâneo da "nouvelle vague" francesa, de que foi parte indeclinável, ele impôs um cinema verdadeiramente novo que deixou uma marca indelével do lado do tratamento do tempo como paradoxo maior.
Cineasta fulgurante do tempo e do espaço, Alain Resnais investiu-os sempre a partir do cérebro mas também do corpo das suas personagens, mesmo quando dedicou especial atenção a aspectos arquitectónicos do filme, como aconteceu sobretudo nos seus filmes iniciais - e aí esteve ao nível de Michelangelo Antonioni. A sua foi, portanto, uma poética moderna das fronteiras do tempo e dos limites do cérebro. Quem conhece os seus filmes não o esquecerá como um dos maiores cineastas de sempre.
Nota bibliográfica
Ausente da bibliografia portuguesa de cinema, salvo por um catálogo da Cinemateca Portuguesa (Lisboa, 1992), Alain Resnais foi alvo de estudos de referência em França, de que entre outros destaco os fundamentais "Alain Resnais arpenteur de l'imaginaire", de Robert Benayoun (Paris, Éditions Stock, 1980 - 1985, 1999 em edições revistas e aumentadas) e "Alain Resnais. Liaisons secrètes, accods vagabonds", de Suzanne Liandrat-Guigues e Jean-Louis Leutrat (Paris, Cahiers du Cinéma, 2006). Também Gilles Deleuze faz referência detalhada aos seus filmes em "L'image-temps" (Paris, Les Éditions de Minuit, 1985).
Cineasta fulgurante do tempo e do espaço, Alain Resnais investiu-os sempre a partir do cérebro mas também do corpo das suas personagens, mesmo quando dedicou especial atenção a aspectos arquitectónicos do filme, como aconteceu sobretudo nos seus filmes iniciais - e aí esteve ao nível de Michelangelo Antonioni. A sua foi, portanto, uma poética moderna das fronteiras do tempo e dos limites do cérebro. Quem conhece os seus filmes não o esquecerá como um dos maiores cineastas de sempre.
Nota bibliográfica
Ausente da bibliografia portuguesa de cinema, salvo por um catálogo da Cinemateca Portuguesa (Lisboa, 1992), Alain Resnais foi alvo de estudos de referência em França, de que entre outros destaco os fundamentais "Alain Resnais arpenteur de l'imaginaire", de Robert Benayoun (Paris, Éditions Stock, 1980 - 1985, 1999 em edições revistas e aumentadas) e "Alain Resnais. Liaisons secrètes, accods vagabonds", de Suzanne Liandrat-Guigues e Jean-Louis Leutrat (Paris, Cahiers du Cinéma, 2006). Também Gilles Deleuze faz referência detalhada aos seus filmes em "L'image-temps" (Paris, Les Éditions de Minuit, 1985).
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