“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

quinta-feira, 7 de julho de 2016

Poéticas de Abbas Kiarostami


       “É Através das Oliveiras o grande filme que culmina esta fase da obra do cineasta de uma maneira superior, curiosamente também quanto ao uso do plano-sequência, de que aqui se pode falar já sem hesitação dado o seu uso sistemático e deliberado desde o início, primeiro mostrando a estrada que um carro percorre enquanto os que nele viajam dialogam, depois mostrando o que se vê através da janela do lado oposto ao lugar da condutora. Como se sabe, este é um filme sobre a rodagem de outro filme, na continuidade de Onde fica a casa do meu amigo? e E a vida continua…. Na sequência do acampamento da equipa de filmagens, sobretudo no primeiro momento dela, o do diálogo com o homem que perdeu a mulher com quem vivera durante 50 anos, o cineasta dedica-se a um trabalho prodigioso com planos longos e profundidade de campo, o que torna essa sequência um ponto central de referência na obra dele. Num segundo momento, na manhã seguinte, ele prolonga esse tratamento do espaço, já que é de novo o espaço que aqui está em causa. Mas é com a obsessiva repetição da cena do jovem casal, sempre filmada frontalmente e em plano fixo embora com momentos de acesso à varanda onde os actores descansam, também eles prodigiosos, que o filme atinge um nível de consciência de si mesmo que a meu ver o faz exceder o próprio Close-Up, com o qual mantém afinidades evidentes. O mais admirável será, contudo, mais ainda do que as árvores abanadas pelo vento, o final, com o plano geral muito longo e as linhas traçadas na paisagem pelas figuras miniaturizadas dos protagonistas, os actores do filme dentro do filme. Isso é pura beleza, inominável.

                   through-the-o        

        Se O Sabor da Cereja retoma as questões dos filmes anteriores, até por ser  também um filme de percurso, aí o cineasta detém-se não apenas no espaço exterior que o carro percorre e no que a partir deste se vê, mas também no seu interior e na guarita do guarda das obras. É, todavia, a parte final do filme que alonga a duração dos planos, do carro em movimento e a partir dele, mas também no recorte das janelas em planos tirados do interior (o Museu de História Natural) e do exterior (o apartamento), como que em consonância com os diálogos e o estado de espírito do protagonista.
       Dir-se-ia que esse é um tratamento do tempo fílmico que se impõe ao cineasta como dilatado, por contraposição ao do instantâneo fotográfico que ele também pratica. Dessa maneira a imagem em movimento se contrapõe melhor para ele á imagem fixa, desprovida de movimento, questão a que mais tarde vai dedicar um outro filme.
        Como é compreensível, é num filme mais concentrado espacialmente, O vento levar-nos-á..., que Kiarostami leva mais longe as duas questões: plano-sequência (duração do plano ) e profundidade de campo. De facto, aí estão em causa trajectos na aldeia, desde a chegada a ela, em que as personagens percorrem ruas e escadas, e também o percurso que o protagonista tem que descrever, até ao cimo de uma colina, de cada vez que recebe uma chamada no telemóvel. Mas vai ser em espaços interiores, ou captados sobre o interior, que o cineasta vai afinar a questão da profundidade de campo, nas recorrentes cenas nas varandas do pátio interior, a primeira das quais absolutamente prodigiosa, em dois momentos de diálogo com a criança, na escola e numa casa vistas a partir de um ponto de vista exterior que permite observar a deslocação desta em profundidade pela abertura da porta, e na assombrosa sequência passada na escuridão da caverna. O final, com o percurso de moto pelas searas, parece já um puro devaneio de pintor, da parte de um cineasta que tinha deixado espalhados ao longo do filme breves apontamentos de espaços vazios ocupados por personagens anónimas ou secundárias (apontamentos tipo Yasujiro Ozu), e que se percebe que faz o protagonista subir frequentemente a uma colina, não só porque aí se situa o cemitério e alguém escava um poço, uma vala, mas também para poder mostrar, a partir daí e enquanto acompanha a personagem em planos longos, o espantoso pano de fundo das montanhas. Aliás, o último plano do filme, com a água que corre, volta a ser longo.


                                               A mudança do dispositivo


           Já no início deste século, Kiarostami regressa ao documentário com ABC África, sobre os órfãos da SIDA no Uganda, e mesmo nessas circunstâncias encontramos logo no início planos da chegada a Kampala que são tirados do interior de um carro, de maneira a captarem esta paisagem nova nos seus filmes de um modo que implica a sua assinatura. Mais à frente, existem dois planos filmados nas ruas de um bairro pobre cuja duração permite dar perfeitamente conta da situação espacial das personagens, nomeadamente crianças, o que volta a acontecer no primeiro plano, no hotel, com a criança adoptada pelo casal austríaco. Entre esses momentos, ocorrera a fabulosa sequência nocturna no acampamento da equipa de filmagens, primeiro com alguma luz e o diálogo sobre os mosquitos e a própria luz, depois na escuridão, quando ela se apaga à meia-noite, o que torna essa segunda parte predominantemente sonora em ecrã negro, salvo no início (o fósforo) e no final (a tempestade). No fim, mas só no fim da noite nasce um novo dia. 
          Acontece, porém, que a partir de Ten o dispositivo do cineasta sofre uma alteração radical, que as novas câmaras digitais permitem.

                  Ten 2

        Nos filmes anteriores o dispositivo kiarostamiano era essencialmente exterior, baseado na filmagem em cenários naturais, contra a prática do “cinema moderno americano” mas na linha do neo-realismo italiano, e no plano longo, que convocava uma participação atenta e interessada do espectador, não isenta de um certo lado contemplativo. Com Ten o cineasta fecha-se e fecha-nos, como espectadores, no interior de um automóvel, um táxi, já não fora da cidade mas em Teerão. De certa forma, é o Irão moderno contra o Irão mais tradicional, embora percorrido por problemáticas modernas, aliás à semelhança dos filmes anteriores filmados no seu país.
       Contudo, este recentramento do dispositivo, que o vai centrar na figura humana, não anula, antes reforça, o uso do plano longo. Será mesmo curioso procurar encontrar a razão de ser deste novo dispositivo na obra de Abbas Kiarostami. E inquirindo-o a resposta parece ser mais sonora, a palavra, do que visual, a figura humana.
        De facto, o que parece originar em Ten a proximidade até à intimidade de um lugar no interior de um automóvel é a necessidade de captar as palavras confessionais dos passageiros do táxi. Se esta resposta for correcta, como parece, ela no cinema arrasta consigo a necessidade de mostrar a grande proximidade física, o que significa que aqui o som implica a imagem. Mas uma imagem, note-se, em plano longo, de modo a captar em continuidade a expressão de quem fala, o que remete para uma nova preocupação do cineasta com a interioridade, a verdade interior das suas personagens, ou uma nova manifestação dessa mesma preocupação, anteriormente mais dependente de um nível de comportamento e também da palavra. Por sua vez, esse plano longo só em certos casos é verdadeiro plano-sequência, de passageiros ou da condutora, já que o cineasta não está obcecado com esta questão formal, antes preocupado com a verdade de cada um(a) daqueles/daquelas que filma, o que o leva a fazer, em certos casos, encurtamentos com breves cortes na continuidade, e a alternar planos das duas personagens durante o diálogo. Além disso, durante quase todo o filme existe, através das janelas do táxi, uma profundidade de campo sobre as ruas da cidade, assim parcialmente trazidas para o interior do plano, sem prejuízo do seu permanente funcionamento em fora de campo.

                     Abbas Kiarostami: In Memoriam

           Se compararmos Ten com O vento levar-nos-á..., verificamos que neste o nível psicológico da personagem do jornalista passa mais pela inscrição dele no espaço do grupo de habitações e no espaço físico, por forma que mostra o seu desajustamento em relação àquele local. Ora nada disto acontece já em Ten, em que o dispositivo se torna minimal e a própria narrativa desaparece, o que torna ainda mais justificado que se passe a falar de um cinema minimal, também em termos espaciais, do autor, em que se passa a tratar de inscrever o espaço exíguo nas personagens que nele se sucedem. 
          É em 10 on Ten, filme em que o cineasta reflecte sobre o filme anterior, sobre o seu próprio cinema, sobretudo a propósito do uso das novas câmaras digitais, e sobre o cinema em geral, que Kiarostami assume, pela primeira vez na sua obra, o plano-sequência integral, o que é plenamente justificado pela necessidade de, com o dispositivo do filme anterior, se explicar ele próprio, em continuidade, para a câmara, nas suas 10 lições de cinema. 
         Mas vai ser em Five Dedicated to Ozu, expressa homenagem a Yasujiro Ozu, o grande mestre do plano fixo e longo, que Kiarostami vai levar ao extremo de duração o uso do plano-sequência, contudo sobre espaços vazios e desconectados, para me servir da terminologia de Gilles Deleuze. Deste modo, a participação do espectador, que a proximidade física das personagens e a palavra implicavam em Ten, desfaz-se, e o dispositivo volta a tornar-se exterior e até mais contemplativo, devido à duração de cada um dos cinco planos longos que o compõem. E então, e só então, o cineasta assume em plenitude o plano-sequência de muito longa duração sobre um mesmo motivo físico, o mar – a eternidade –, com que os outros elementos presentes em cada plano, no último apenas na banda sonora, abissalmente dialogam.
        Note-se que, logo a seguir, o cineasta faz um curto filme de 30 minutos sobre as suas próprias fotografias: Roads of Kiarostami. Filmando a preto e branco fotografias tornadas, elas também, a preto e branco (e há, de facto, um momento em que ele começa a fazer fotografia desse modo), esse é um filme admirável pelo que pretende esclarecer sobre a arte do cineasta, sobretudo na fotografia, à semelhança do que em 10 on Ten faz sobre o cinema e em Five faz sobre o espaço e o tempo, a vida e a morte, o próprio cinema. Sem recurso a qualquer palavra, Five é de uma prodigiosa concepção e torna-se uma pedra fundadora decisiva para entender, não só Ozu e Kiarostami, mas o mistério mais secreto e profundo da própria arte do cinema. Mas recorde-se que em Roads of Kiarostami são as estradas dos seus filmes que ele começa por comentar, para o que as percorre nas fotografias mas também nas imagens em movimento que inclui, em que usa muito a propósito o plano longo para dar a continuidade espacial real em contraste com aquela que é descoberta na imagem fixa, em que vai acabar por prevalecer o branco da neve e em que a última fotografia arde no último plano do filme.
                      Roads to Kiarostami


        Talvez que, cada um a seu modo e na sua respectiva perspectiva extrema, Ten, 10 on Ten, Five Dedicated to Ozu e Roads of Kiarostami  representem o apogeu de uma poética kiarostaminiana baseada no plano-sequência. Este processo atinge nesses filmes um tal apuro e justificação, que se percebe bem que depois deles o cineasta tinha que se voltar para outros horizontes temáticos e formais, como efectivamente parece ter acontecido a partir de Shirin, por muito que neste ecoe ainda, embora já aplicado à sala de cinema, o dispositivo formal de Ten. Efectivamente, em Cópia Certificada, o seu mais recente filme concluído, filmado em Itália, o cineasta limita-se a breves, embora brilhantes, apontamentos que remetem para o plano-sequência e a profundidade de campo e para o dispositivo minimal de Ten. 
          Sobre a estrada nos filmes do cineasta veja-se o que escreve Jacques Rancière em "A imagem pensativa", incluído em "O Espectador Emancipado", o que não exclui a possibilidade de que a profundidade de campo nos filmes do cineasta também pense numa via aberta pelo seu uso em filmes de Jean Renoir e Orson Welles, como Gilles Deleuze observou em "A Imagem-Tempo".
         Mas o recentramento do dispositivo dos filmes do cineasta em Ten vai de par com um novo centramento do seu cinema nas personagens femininas, o que tanto Shirin como Cópia Certificada vêm confirmar e se torna uma viragem temática muito importante na obra dele. Assim, uma nova poética da mulher terá começado a delinear-se em Ten, que assim se torna, também por esse motivo, um filme central na obra de Abbas Kiarostami."


(Excerto de uma comunicação inédita, 2011)

       Sobre Abbas Kiarostami, ver também “Uma tarde na Toscânia”, de 14 de Janeiro de 2012,  e “Grandeza de Kiarostami”, de 6 de Outubro de 2013.

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