“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 29 de outubro de 2016

O rio sem regresso

   Com "O Ornitólogo" (2016) João Pedro Rodrigues constrói um filme primitivo e belíssimo, que dá a melhor continuidade a uma obra cinematográfica já longa e de grande relevo entre curtas e longas-metragens, documentário e ficção.                
                      (Imagem: Divulgação)
   O início remete para "Rio Sem Regresso"/"River of No Return", de Otto Preminger (1954), para o que o cineasta chamava a atenção há tempos nos Cahiers du Cinéma, quando Fernando/Paul Hamy desce o rio numa canoa, no início de um percurso solitário em que vai encontrar primeiro duas chinesas, que o deixam amarrado e pendurado numa árvore.
   Mas o melhor de "O Ornitólogo" chega a partir do momento em que a sombra móvel das nuvens se desloca sobre a terra, na floresta com os mascarados que falam mirandês e o encontro fatal do protagonista com o pastor surdo-mudo, porque a partir daí sente-se também a presença de "A Sombra do Caçador"/"The Night of the Hunter", de Charles Laughton (1955), com o seu proposto bestiário simbólico.
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   Depois da estatuária religiosa, das amazonas que o atingem e o acordam, dos animais estáticos e deslocados e de Fernando se ter despojado dos seus escassos pertences, o final, com os duplos, é inesperado, justo e bem visto, levando-os a caminho de Pádua, onde se cruzam com as duas  chinesas do início, num percurso que tinha começado sob a égide de Santo António e no Caminho de Santiago.
    Com uma fotografia soberba de Rui Poças, um grande trabalho sobre os ruídos (a floresta, a natureza) e um grande actor, as referências de um erotismo religioso percebem-se e são inteiramente conseguidas, mesmo quando forçadas - a pomba branca que afinal não tinha partido uma asa.  
                      O Ornitólogo : Foto
   Escrito com João Rui Guerra da Mata, "O Ornitólogo" de João Pedro Rodrigues será o seu melhor filme até agora, com o seu percurso iniciático extravagante e fantástico, que junta o sexo e a morte com o despertar e o ressurgir. São assim inteiramente merecidos o reconhecimento e a divulgação internacionais que a sua obra está a merecer - sobre o cineasta, ver "Encruzilhada", de 30 de Março de 2013.

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