O realizador
de "Mal" (1999), Alberto Seixas Santos, é um dos mais raros cineastas
portugueses, figura tutelar de algum do mais jovem cinema nacional talvez menos por
causa dos seus filmes do que pela sua intervenção na formação de gerações mais novas, na qualidade de professor da Escola Superior de Teatro e Cinema do Conservatório
Nacional.
Homem dos mais
respeitados da sua geração, a da segunda vaga do "cinema novo"
português - a do Centro Português de Cinema, apoiado pela Fundação Calouste Gulbenkian -, tornou-se conhecido por muito poucas longas-metragens:
"Brandos Costumes" (1972/1975), a mais straubiana aproximação
cinematográfica ao Estado Novo, ao que ele representou e representava aquando
do seu fim, com a Revolução de Abril; "Gestos e Fragmentos" (1982), um documentário de reflexão exemplar sobre os tempos da Revolução e sobre as
causas que estiveram na sua origem; mais recentemente "Paraíso Perdido" (1995),
sobre outro problema candente da Revolução, a descolonização e o regresso de
inúmeros portugueses em consequência dela - isto para além de ter participado em dois
documentários colectivos, "As Armas e o Povo" (1975) e "A Lei da
Terra" (1976).
É conhecido o
cepticismo de Seixas Santos, que se pode entender como um olhar desapaixonado
mas lúcido sobre o mundo que o rodeia, que ele, mais que procurar reflectir
tenta perceber, desvendar para si e para nós, espectadores. É essa atitude de
descoberta, de procurar aceder ao mistério das coisas e dos seres, aquilo que,
para mim, faz o encanto dos filmes do cineasta.
Com
"Mal" ele leva-nos no encalço de seres espectrais, perdidos
no ritmo da vida actual depois de terem vivido, décadas antes, os tempos
revolucionários de que guardam, mais distantemente uns do que outros, recordações,
mas que lhes deixaram marcas na experiência da vida e, consequentemente, na
memória. O filme gira em volta de um casal, Cathy/Pauline Cadell, de
ascendência irlandesa, e Pedro/Rui Morrison, um advogado de sucesso. Confluindo
para eles ou partindo deles, outras personagens ganham relevo, como
o-homem-que-procura-a-rapariga-desaparecida, o-jovem-delinquente, o-seu-amigo e
a-sua-mãe, o-casal-de-ourives, o-amigo-de-Cathy-que-a-vem-visitar e
a-rapariga-sem-rumo-que-atravessa-todo-o-filme. Há mais, mas estas são as
principais.
O que torna
singularíssimo este filme, extremamente bem feito sem para isso pretender
chamar a atenção, é que ele se centra, dir-se-ia que obsessivamente, no casal
de protagonistas, em especial em Cathy, como se o ambiente da cidade, Lisboa, e
a própria cidade estivessem presentes apenas para lhes servirem de cenário. É
este formidável interesse pelo humano que arrasta consigo todo o interesse do
filme e nos leva a seguir apaixonadamente as personagens, cujas vidas
partilhamos de modo a interessarmo-nos por elas, pelo seu passado e pelo seu destino, durante o
tempo que o filme dura.
Todavia, é a
extraordinária carga humana das personagens e das situações, por si mesmas e em si mesmas, aquilo que fica
depois de termos assistido ao filme, porque cada um desses seres
transporta consigo um pedaço da realidade e da memória dos últimos vinte e
cinco anos da nossa vida colectiva. Mais do que a espessura humana, que em
alguns casos também têm, essas personagens representam situações, estados de
coisas que se tornaram quase banais nos dias de hoje, de tal modo que o autor,
ao tentar perceber o que o rodeia e disso dar conta, constrói personagens
arquétipas sem cair no cliché. Todos nós estamos ali, em
algum lugar deste filme, e por isso ele nos surge como estranhamente familiar,
próximo da nossa experiência de todos os dias (o que, aliás, acontecia também
com os anteriores filmes de Seixas Santos).
Assim, o
cepticismo do autor ganha forma e vida num "requiem" pelo
fim dos tempos, com esse tom apocalíptico que o final do filme traz consigo, sem
que saibamos exactamente o que se vai seguir a essa promessa.
Sem que disso
nos queiramos aperceber, somos levados a admirar o trabalho fotográfico de
Acácio de Almeida, o seu trabalho sobre o lado luminoso e o lado obscuro dos
dias e dos seres, assim como somos levados a apreciar o excelente trabalho
sobre o som, nomeadamente sobre a música, e o espantoso
trabalho de criação do espaço a que o realizador se dedica, por forma a
encerrar as personagens no labirinto da cidade e no labirinto das suas vidas.
Isto sem esquecer a participação no argumento de Maria Velho da Costa, que não terá sido indiferente a que as diferentes linhas narrativas do filme
funcionem autonomamente de maneira consistente.
O mal de que
fala o título do filme é alguma coisa que todos nós conhecemos, que todos nós
transportamos connosco, com que convivemos, chame-se o que se chamar, doença,
desespero, cansaço, solidão. Ora é precisamente por só nos mostrar isso que
Alberto Seixas Santos nos deixa saturados deste nosso tempo, que cada um de nós
vive sobre os estilhaços de um outro tempo, chame-se ele juventude, entusiasmo,
energia ou ilusões. E quando sabemos que o realizador construiu o seu filme
sobre situações e personagens que conheceu, somos convidados a nele entrar ainda
mais, a revermo-nos nos espelhos que frequentemente redobram os espaços
interiores em que ele decorre.
Convém, aliás,
ver este filme como uma espécie de réplica de "O Novo Mundo"/"Le nouveau monde",
episódio de "ROGOPAG" (1962) assinado por Jean-Luc Godard, em que o
protagonista acorda para um novo mundo, que ele desconhece, a partir dos
sintomas da chegada do fim de outro mundo.
Deste modo, se
num plano sintomático "Mal" nos leva a reflectir sobre o fim de um
mundo, um fim dos tempos, interessará saber para que novo mundo somos chamados
com o anúncio do fim deste, destes tempos. Penso que o autor disso tem perfeita noção e por isso deixa abertas diante de nós as portas do que se há-de
seguir, juntamente com o convite a entrarmos no labirinto e, dentro dele,
procurarmos, cada um à sua maneira, o nosso caminho, à semelhança do que
acontece com as suas personagens.
Costuma-se
dizer de um grande filme que ele é manifestação da sensibilidade ou
da inteligência do seu autor. Será bom, a propósito deste filme,
habituarmo-nos à ideia de que essas duas dimensões humanas são indissociáveis
na criação artística, nomeadamente no cinema, e podem estar na origem de obras
que aparentam uma grande frieza e um convite ao distanciamento, como acontece
neste filme de Alberto Seixas Santos, à semelhança do que sucedia nos seus
filmes anteriores. A partir daqui, da reflexão deste filme, poderemos entender como, no
seu mellhor, o cinema pode continuar a ser uma "janela aberta" sobre
o mundo e sobre nós, que nele vivemos - todos e cada um de nós, quer queiramos ou
não.
Abril 2000
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