Quem escreveu sobre a dificuldade de publicação de autores portugueses sobre cinema (ver "Biblio de cinema", 28 de Outubro de 2012) está obviamente obrigado a regressar ao assunto do ponto de vista das principais obras nessas circunstâncias publicadas no ano que agora finda. E isto pela simples e elementar razão de que foram publicados durante 2012 livros muito importantes sobre cinema de autores portugueses, que vêm demonstrar que a escrita sobre este assunto prossegue, com referências bibliográficas fundamentais sobre o próprio cinema português, como é natural.
Começo pelo Festival Curtas Vila do Conde que, no seu vigésimo aniversário, fez sair um volume, "Puro/Pure Cinema: Curtas Vila do Conde 20 Anos Depois/20 Years After" (coordenação de Mário Micaelo e Daniel Ribas), em que reúne uma série de entrevistas com alguns dos mais importantes cineastas que ao longo destes 20 anos por ali passaram. Trata-se de um livro tipo album muito importante, que demonstra o nível desta mostra internacional de cinema e a consciência de si própria que ela adquiriu. Complementarmente, e a partir dos 10 anos da Agência da Curta Metragem, criada pelo mesmo Festival e com uma actividade muito meritória na promoção e divulgação da curta-metragem portuguesa, com data de 2010 saiu um outro volume, "Agência - Uma Década em Curtas" (coordenação de Daniel Ribas e Miguel Dias), que reúne textos e entrevistas/conversas com realizadores portugueses e é também do maior interesse. Trata-se de uma manifestação cinematográfica do maior relevo e de repercussão internacional inquestionável, que tem dado um forte contributo para o aparecimento e lançamento de novos cineastas portugueses e nestes dois volumes abre para o exterior uma parte muito significativa do valioso trabalho até agora desenvolvido.
No prosseguimento do seu trabalho de divulgação do cinema português, e em consonância com a retrospectiva que dedicou ao cineasta, a Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema publicou um catálogo sobre António de Macedo, um dos principais nomes do novo cinema português dos anos 60/70: "O Cinema de António de Macedo", com coordenação de Manuel Mozos. Trata-se de uma publicação muito importante sobre um cineasta e uma época do cinema português que não devem cair no esquecimento. Com coordenação Francesco Giarrusso, um italiano a trabalhar em Portugal, foi também publicado o catálogo "Ermanno Olmi. Uma excêntrica normalidade", por ocasião da retrospectiva que dedicaram a este importante nome do cinema novo italiano a Guimarães 2012 Capital Europeia da Cultura e a Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema.
Jorge Leitão Ramos fez sair na Caminho o terceiro volume, "Dicionário do Cinema Português 1895-1961", aquele que estava em falta de um ambicioso projecto de cobrir toda a história do cinema português neste formato de dicionário. Ocupando-se principalmente das "longa-metragens profissionais de ficção", mas também "de algumas curtas e médias-metragens de ficção", de "documentários de vária duração" e das figuras mais importantes do cinema português do período em causa, este terceiro volume, que é cronologicamente o primeiro, vem confirmar a obra no seu todo como incontornável e de referência sobre uma cinematografia como tal mal conhecida dos próprios portugueses. O pessoal olhar crítico, exigente como lhe compete, do autor enriquece um projecto que adquiriu uma dimensão monumental e assim se dá por cumprido no essencial de maneira muito satisfatória - embora se fique agora à espera de um novo volume, o quarto. Quem quiser estudar com seriedade o cinema português terá que, necessariamente, passar por aqui - os anteriores volumes são "Dicionário do Cinema Português 1962-1988" (Lisboa, Caminho, 1989), e "Dicionário do Cinema Português 1989-2003" (Lisboa, Caminho, 2005).
À margem do cinema, mas estabelecendo relações selectivas com ele, destaco "Entre o Céu e a Terra", do escultor Rui Chafes (Lisboa, Documenta) que, depois de na primeira parte descrever todo um percurso pessoal sobre a história da escultura, na segunda parte, redigida no modo aforístico de Novalis, que traduziu para português ("Fragmentos de Novalis", com selecção, tradução e desenhos de Rui Chafes, Lisboa, Assírio & Alvim, 1992), desenvolve um pensamento pessoal sobre a arte e o artista com referências dispersas a cineastas como Jean-Luc Godard, Andrei Tarkovski, Hans-Jürgen Syberberg, Pier Paolo Pasolini, Jacques Tati, Pedro Costa e Robert Bresson, entre diversos outros nomes maiores da pintura, da música e da literatura. O simples facto de colocar os nomes dos primeiros ao mesmo nível destes, o que é de há muito uma evidência embora nem todos a partilhem, dá a medida da importância que para o autor muito justamente o cinema reveste na elaboração de uma reflexão pessoal, de artista, muito interessante. Retenho aqui: "21. Existe uma alma em tudo o que é bem feito. O que é mal feito é rombo, baço triste. Tem de haver uma dignidade dos materiais assim como há uma dignidade das acções. (...)" (pág. 50).
Escrito para o centenário do cinema, só agora (postumamente) foi editado "Aniki-Bóbó" de Manuel António Pina (1943-2012) - Lisboa, Assírio & Alvim -, um livro em que o autor estuda exaustivamente a primeira longa-metragem de Manoel de Oliveira, rodada no Porto. Um estudo muito bem informado e que segue a via que penso mais justa de leitura do filme, que descreve, comenta e divulga de forma erudita e exemplar, contextualizando o cineasta e a obra, da autoria de um escritor português muito importante, Prémio Camões 2011, para o qual o cinema também não foi indiferente. Enriquecido por uma filmografia completa, este é, também ele, um livro de referência para o futuro.
Por último, e numa área contígua e imediatamente anterior ao cinema, a fotografia, quero salientar "A Última Imagem (fotografia de uma ficção)", de Margarida Medeiros, um estudo muito interessante e muito bem documentado de "recepção da fotografia, ou da sua cultura, para utilizar a expressão de Pedro Miguel Frade", nas palavras da autora, que estabelece referências sólidas na história e na mitologia popular e ficcional de um processo técnico que, como o cinema, se veio a transformar numa arte (Lisboa, Documenta).
Como se vê, e mesmo deixando de fora, pelas suas características próprias, os trabalhos académicos, em 2012 viram a luz do dia obras muito importantes sobre o cinema e áreas afins, todas elas de autores portugueses, o que cumpre saudar e permite situar melhor o que se disse antes. Num mercado editorial reduzido, como é o do cinema em Portugal, este é um panorama muito bom e estimulante, nomeadamente sobre o cinema português, que permite compreender melhor o lugar, de crescente importância, que o cinema ocupa na cultura portuguesa.
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