Depois de "Merde", o episódio que dirigiu para "Tóquio!"/"Tokio!" (2008), que dava conta do elevado (e justificado) grau de exasperação do cineasta, o mais recente filme de Leos Carax, "Holy Motors" (2012), surge como uma libertação de energias simultaneamente crítica e redentora. De facto, sem qualquer tipo de facilitismo, nem consigo próprio nem com os espectadores, o cineasta constrói aí um filme superior, à sua medida e à medida do próprio cinema, em que além de realizador é também, como sempre, argumentista.
Em primeiro lugar, há neste filme um tom rememoratório e nostálgico do próprio cinema, que começa com as imagens recuperadas de séries fotográficas de Étienne Jules Marey, precursor fundamental do cinema com a sua cronofotografia, prossegue na sequência de abertura e vai atravessá-lo todo de citação em referência. O próprio protagonista, M. Oscar, alás M. Merde, interpretado de novo e com panache por Denis Lavant, nas diversas peles que veste para os seus sucessivos encontros, tem momentos em que remete ora para o fantástico ora para o melodrama, ora para um jeito monteiriano ora para um lado tatiesco, ora para o cinema mudo ("Fantômas", de Louis Feuillade, 1913-1914) ora para o cinema moderno (Georges Franju via Edith Scob, em "Les Yeux Sans Visage", 1959, - um cineasta que partiu também de um serial do mudo para o seu "Judex, o Vingador"/"Judex", 1963), o que torna o filme numa espécie de cavalgada selectiva e fascinante pela história do cinema.
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Mas, em segundo lugar, deve dizer-se que de novo, como em "Pola X" (ver "Por Carax: as versões", 18 de Fevereiro de 2012), mas de forma mais determinada, Leos Carax investe este filme como se ele fosse não apenas mais um mas um novo último filme, o que na circunstância passa por fazer o luto do próprio cinema e do seu tempo, que no entanto celebra, e de que maneira. Compreende-se a intenção porque se conhecem os motivos - marcado pelo insucesso comercial, o cineasta encontra grandes dificuldades para cada novo filme -, mas mesmo assim aprecia-se sobretudo a beleza e o brio do filme, soberbo em cada encontro de M. Oscar e em cada evocação que ele convoca, de forma precisa e deliberada. Carax não é, de maneira nenhuma, um cineasta comercial, embora se tenha transformado num cineasta de culto que preserva o seu próprio mito e mistério, que encena enquanto criador.
"Holy Motors" é um grande filme, construído sobre a história do cinema e sobre o presente deste, o que lhe confere a distância justa, mas que se encara e estabelece como grande filme moderno celebratório e comemorativo de algo que excede em muito a ideia mais evidente da "morte do cinema" ou do fim de um certo mundo em que ele foi possível. E nesse tom celebratório e comemorativo quero ver mais o amor à arte do que a simples beleza do gesto, para que remete explicitamente uma réplica, que se quer reveladora, de M. Oscar no diálogo com Michel Piccoli. É que neste filme o cinema e o cineasta apresentam-se vivos e de boa saúde, e mesmo a hipótese colocada da ausência de espectadores pode não passar de uma boutade, embora eventualmente premonitória.
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M. Oscar, aliás M. Merde, que surge várias vezes, em diferentes personagens, como um homem iluminado e que as mulheres - nomeadamente Eva Mendes como Kay M e Kylie Minogue como Eva Grace/Jean em duplicação reminiscente de Hitchcock - iluminam, funciona lapidarmente e subliminarmente como a personagem masculina actual, reduzida a si própria nos seus desdobramentos e assim evanescente - e Denis Lavant dá aqui conta dos seus múltiplos talentos de actor.
Por mim, considero que o saber e o amor do cinema que Leos Carax aqui volta a demonstrar de maneira exuberante não devem ficar sem consequências, e consequências nos termos dele, que são os do cinema que ainda hoje interessa. Mesmo no seu tom de revisitação e memória do próprio cinema, e apesar do cepticismo final das máquinas mecânicas sobre o seu próprio futuro, "Holy Motors" é sem sombra de dúvida um grande filme que não merece, em caso algum, não ter descendência.
Por mim, considero que o saber e o amor do cinema que Leos Carax aqui volta a demonstrar de maneira exuberante não devem ficar sem consequências, e consequências nos termos dele, que são os do cinema que ainda hoje interessa. Mesmo no seu tom de revisitação e memória do próprio cinema, e apesar do cepticismo final das máquinas mecânicas sobre o seu próprio futuro, "Holy Motors" é sem sombra de dúvida um grande filme que não merece, em caso algum, não ter descendência.
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