“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

O regresso de Carax

       Depois de "Merde", o episódio que dirigiu para "Tóquio!"/"Tokio!" (2008), que dava conta do elevado (e justificado) grau de exasperação do cineasta, o mais recente filme de Leos Carax, "Holy Motors" (2012), surge como uma libertação de energias simultaneamente crítica e redentora. De facto, sem qualquer tipo de facilitismo, nem consigo próprio nem com os espectadores, o cineasta constrói aí um filme superior, à sua medida e à medida do próprio cinema, em que além de realizador é também, como sempre, argumentista.
        Em primeiro lugar, há neste filme um tom rememoratório e nostálgico do próprio cinema, que começa com as imagens recuperadas de séries fotográficas de Étienne Jules Marey, precursor fundamental do cinema com a sua cronofotografia, prossegue na sequência de abertura e vai atravessá-lo todo de citação em referência. O próprio protagonista, M. Oscar, alás M. Merde, interpretado de novo e com panache por Denis Lavant, nas diversas peles que veste para os seus sucessivos encontros, tem momentos em que remete ora para o fantástico ora para o melodrama, ora para um jeito monteiriano ora para um lado tatiesco, ora para o cinema mudo ("Fantômas", de Louis Feuillade, 1913-1914) ora para o cinema moderno (Georges Franju via Edith Scob, em "Les Yeux Sans Visage", 1959, - um cineasta que partiu também de um serial do mudo para o seu "Judex, o Vingador"/"Judex", 1963), o que torna o filme numa espécie de cavalgada selectiva e fascinante pela história do cinema.
                    
        Mas, em segundo lugar, deve dizer-se que de novo, como em "Pola X" (ver "Por Carax: as versões", 18 de Fevereiro de 2012), mas de forma mais determinada, Leos Carax investe este filme como se ele fosse não apenas mais um mas um novo último filme, o que na circunstância passa por fazer o luto do próprio cinema e do seu tempo, que no entanto celebra, e de que maneira. Compreende-se a intenção porque se conhecem os motivos - marcado pelo insucesso comercial, o cineasta encontra grandes dificuldades para cada novo filme -, mas mesmo assim aprecia-se sobretudo a beleza e o brio do filme, soberbo em cada encontro de M. Oscar e em cada evocação que ele convoca, de forma precisa e deliberada. Carax não é, de maneira nenhuma, um cineasta comercial, embora se tenha transformado num cineasta de culto que preserva o seu próprio mito e mistério, que encena enquanto criador.
        "Holy Motors" é um grande filme, construído sobre a história do cinema e sobre o presente deste, o que lhe confere a distância justa, mas que se encara e estabelece como grande filme moderno celebratório e comemorativo de algo que excede em muito a ideia mais evidente da "morte do cinema" ou do fim de um certo mundo em que ele foi possível. E nesse tom celebratório e comemorativo quero ver mais o amor à arte do que a simples beleza do gesto, para que remete explicitamente uma réplica, que se quer reveladora, de M. Oscar no diálogo com Michel Piccoli. É que neste filme o cinema e o cineasta apresentam-se vivos e de boa saúde, e mesmo a hipótese colocada da ausência de espectadores pode não passar de uma boutade, embora eventualmente premonitória. 
                    
              M. Oscar, aliás M. Merde, que surge várias vezes, em diferentes personagens, como um homem iluminado e que as mulheres - nomeadamente Eva Mendes como Kay M e Kylie Minogue como Eva Grace/Jean em duplicação reminiscente de Hitchcock - iluminam, funciona lapidarmente e subliminarmente como a personagem masculina actual, reduzida a si própria nos seus desdobramentos e assim evanescente - e Denis Lavant dá aqui conta dos seus múltiplos talentos de actor
         Por mim, considero que o saber e o amor do cinema que Leos Carax aqui volta a demonstrar de maneira exuberante não devem ficar sem consequências, e consequências nos termos dele, que são os do cinema que ainda hoje interessa. Mesmo no seu tom de revisitação e memória do próprio cinema, e apesar do cepticismo final das máquinas mecânicas sobre o seu próprio futuro, "Holy Motors" é sem sombra de dúvida um grande filme que não merece, em caso algum, não ter descendência.

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