Vulgar e no entanto espantoso, recortado de memória na memória do tempo, como liquefazendo, cristalizando instantes como perceptos subliminares, materializando o talvez inexistente a partir de um fugaz instante recordado. Reminiscências reminiscentes de outras eras, passadas, futuras (quem sabe?), pontuadas por referências históricas - um calendário de Novembro-Dezembro 2000, rostos, edifícios - tornadas flutuantes no fluir das imagens fotográficas. Aquilo foi, aquele tempo foi, mas quando?
É incómoda a insistência num preto e branco sem concessões nem justificação, apenas porque permite o recorte exacto, preciso daquilo que já não interessa, talvez nunca tenha interessado. Um recorte exacto em todos os detalhes, como se se utilizasse a pintura ou a colagem, um recorte em que nada está a mais ou a menos, em que tudo tem a sua justificação precisa. Mas o cinza das cinzas impõe-se, sem impedir o negro, presente até no enquadramento do recorte, que por vezes invade e limita o espaço visível da fotografia, de que estabelece um quadro mais limitado. Mas atenção: estas não são fotografias soltas, para serem vistas isoladamente. Elas formam trípticos, nove trípticos, e como tal devem ser vistas sob pena de se perder a sua arrumação própria.
Pedaços esparsos, dispersos, errantes, em terrenos vagos ou em interiores, uma mesa-escrivaninha, cabides com fatos pendurados, um rosto no centro de uma fotografia no resto a negro, um recorte de janela, um caixilho vazio, inclinado. Tudo joga com tudo e nada joga com nada, de tal maneira a dispersão impõe um critério de afastamento justificado pela ambição do heteróclito, do diverso, vago e vasto. Aglomeração, dir-se-ia, que na sua desarrumação impõe uma ordem precisa que se faz subversiva, para subverter e ser subvertida.
Usura do tempo que impôs as suas marcas naquilo que compôs, desfez, criou a partir de si mesmo, do nada. Um impressionante detalhe, na fissura entre dois edifícios, nas figuras masculinas em espaço labiríntico, no boneco que mimetiza uma criança. Um detalhe que desce por vezes à unidade que o compõe, em grãos de imagem como se fossem pinceladas, que tudo compõem como se nada antes deles existisse e depois deles apenas eles, grãos de imagem, fossem. Tudo a preto e branco, sempre mais preto e cinza do que branco. Uma série de caracteres orientais, uma série de fotografias tipo passe, duas aves mortas, uma imagem factícia de torres supostamente gémeas - o tudo e o nada.
Desfeitos, apagados ou aguçados os contornos, as figuras visíveis como que se voltam sobre si próprias, sobre o nada - sobre nós? - para interpelarem o tempo em que foram e nos interpelarem no nosso tempo. Que fazemos, que faremos com elas, para além de admirarmos a sua perfeição decrépita, usada, que as torna fora de uso, fora de moda, fora do tempo? Não há verso e reverso, primeiro plano e fundo, pois tudo se rebate sobre uma superfície débil, ténue, que a tudo congrega, em si concentra em perda. Nós estivemos ali ou é aquilo uma elaboração indirecta sobre nós, sobre o nosso presente, actual e passado - futuro também?
Desterritorialização absoluta da fotografia para um espaço virtual em que tudo é possível porque nada existe. Nada que persiste, mesmo assim, do fundo e no fundo da memória recortada. A cinza não permite aconchego, o cinza provoca desconforto, reduzindo tudo à sua simples existência fugidia, inconsistente, sem profundidade, sem existência mesmo para além do mero recorte em colagem desenvolvido, como colagem construído sobre o nada, para o nada. Mesmo assim, deste nada que, apesar de tudo, nasceu de um contacto directo com a realidade em diferentes partes do mundo, não sentimos vontade de fugir, ele não nos repele nem enfada já que nos é como que co-natural - o nada somos nós, nós estamos naquele nada.
Nos corredores entre os nove trípticos de fotografias a preto e branco sentimo-nos deslizar pelo vazio, pelo espaço côncavo, oco, entre paredes nuas apenas revestidas por eles, pelas suas fotografias pesadas mas ligeiras, leves como o que não existe, que acabam por se diluir no meio, nas paredes que revestem, como se ali tivessem sido colocadas por distracção ou acaso. Não são janelas, aquelas fotografias, pois não abrem sobre nada, a não ser sobre um tempo equívoco e sobre nós próprios, interditos, chocados perante cada uma delas e perante a sua ordenação em trípticos.
Não se trata de um tempo rarefeito mas de um tempo desfeito, que foi, terá sido mas se desvaneceu e de que permaneceram vestígios soltos, dispersos, em forma de detalhes, pormenores insignificantes doutra forma perdidos, que foram recolhidos e organizados por uma visão de artista, que para nós compôs aqueles quadros quase abstractos de uma dolorosa beleza sobre uma presença insuspeitada, já invísível depois de fugazmente real. Para acreditar nestas imagens não tem, contudo, que se acreditar numa realidade que lhes foi prévia, já que elas convocam apenas a crença nelas próprias, como imagens de artista, como tal criadas e colocadas em série.
Todavia, nós sabemos como realidades dispersas, às vezes simples pormenores em dimensão e em significado, marcam e nos marcam, existem e subsistem para nossa dor, nosso desconforto e nossa inquietação, não necessariamente como acusação, peso na consciência, mas como farrapos soltos que sinalizam a vida - as nossas vidas, a nossa vida -, em que deixam marcas indeléveis, que aqui se trata de fazer durar. Culpa de quem, de quê, porquê? Tudo tem uma tal falta de sentido que apenas estes grandes rectângulos verticais permitem, na sua organização figurativa em nove trípticos, esboçar uma arrumação, mesmo se provisória, racional sobre essa mesma falta de sentido.
Não se trata de um tempo rarefeito mas de um tempo desfeito, que foi, terá sido mas se desvaneceu e de que permaneceram vestígios soltos, dispersos, em forma de detalhes, pormenores insignificantes doutra forma perdidos, que foram recolhidos e organizados por uma visão de artista, que para nós compôs aqueles quadros quase abstractos de uma dolorosa beleza sobre uma presença insuspeitada, já invísível depois de fugazmente real. Para acreditar nestas imagens não tem, contudo, que se acreditar numa realidade que lhes foi prévia, já que elas convocam apenas a crença nelas próprias, como imagens de artista, como tal criadas e colocadas em série.
Todavia, nós sabemos como realidades dispersas, às vezes simples pormenores em dimensão e em significado, marcam e nos marcam, existem e subsistem para nossa dor, nosso desconforto e nossa inquietação, não necessariamente como acusação, peso na consciência, mas como farrapos soltos que sinalizam a vida - as nossas vidas, a nossa vida -, em que deixam marcas indeléveis, que aqui se trata de fazer durar. Culpa de quem, de quê, porquê? Tudo tem uma tal falta de sentido que apenas estes grandes rectângulos verticais permitem, na sua organização figurativa em nove trípticos, esboçar uma arrumação, mesmo se provisória, racional sobre essa mesma falta de sentido.
Nove trípticos fazem 27 fotografias a preto e branco de "Usura", exposição de Paulo Nozolino. O sentido da usura nestes trípticos tem de ser construído pelo visitante, descobrindo-a também em si próprio (ver "Que nada se sabe", 5 de Fevereiro de 2012).
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