“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Dois cineastas maiores

    
             Foram eles os dois grandes responsáveis pelo surgimento do chamado “Cinema Novo” português, no início dos anos sessenta.
         Depois de uma década muito dura, a de cinquenta, em que o que foi feito no cinema português foi, de um modo geral, razoavelmente mau, e em que o talento genuíno de alguns, como Manuel de Oliveira e Manuel Guimarães, foi amordaçado, impedido, condicionado ou esquartejado, os anos sessenta tinham de ser diferenttes (aliás, à semelhança do que aconteceu na maior parte não só da Europa mas do mundo).
           Paulo Rocha com “Os Verdes Anos”, de 1963, e Fernando Lopes com “Belamino”, de 1964, prosseguiram no caminho que em 1961 começara a ser rasgado por José Ernesto de Sousa com o seu “Dom Roberto”. Outros os acompanharam, como António de Macedo e Artur Ramos, mas foram de facto o Paulo e o Fernando que impuseram uma nova dignidade artística e estética no cinema português de então (afinal na continuidade daquilo que tinha sido o combate de Manuel de Oliveira e Manuel Guimarães na década anterior).  
                                    Original

           Para isso, contaram com um produtor, António da Cunha Telles, que veio a ser figura-chave desse “cinema novo” português, na sua fase inicial, pelos filmes que permitiu que fossem feitos.
           Talvez que hoje em dia, quando novos valores despontaram já para o cinema português em décadas sucessivas e os novos espectadores adquiriram hábitos diferentes de uma relação diferente com o cinema, não se possa fazer muito bem ideia do que representou, na primeira metade dos anos sessenta, dois realizadores que tinham estado nos cineclubes, que tinham feito parte importante da sua formação no estrangeiro (Paulo Rocha em França, no IDHEC, onde também estivera Cunha Telles, Fernando Lopes em Inglaterra, na London Film School), conseguirem fazer cada um o seu primeiro filme de longa-metragem.
            E tão diferentes que eles eram um do outro, como ainda são actualmente. 
                     Paulo Rocha ou a arte de ser português

            A narrativa intimista com personagens humildes no tom luminoso mas baço de Lisboa que se desprendia do preto e branco de “Os Verdes Anos”, a personagem lisboeta e popular filmada entre o documentário e a reportagem de “Belarmino” davam o tom para todas as diferenças mas também para todas as afinidades. A sombra que caía sobre a luminosidade das Avenidas Novas, a luminosidade e a garridice da parte mais antiga e típica da cidade em contraste com os modos e meios de vida dos seus habitantes, na sua variedade como que permitiam perceber semelhanças e diferenças, pressentir sensibilidades vincadamente distintas, já então presentes. Os finais dos dois filmes, trágico um não mais do que o outro, eram afirmações de não cumplicidade, de inconformismo, como o eram também a ausência de saídas em universos fechados ou o lançamento de novas figuras físicas, actores e personagens no primeiro caso, personagem-actor no segundo.
        Para além disso, desse novo espírito trazido ao cinema português e de uma comum preocupação realista, embora por vias estéticas diferentes, o Paulo e o Fernado eram homens de formações cinematográficas distintas, o que continuou a ser evidente nas subsequentes obras de cada um deles. Mas não foi por acaso que os seus filmes inaugurais surgiram.
           Recorde-se a importância dos cineclubes na formação de novas gerações para o cinema português, capazes de o fazer e de o apreciar, cineclubes sobre os quais se abatera a repressão do regime em 1958, o ano das eleições presidenciais a que, pela Oposição, concorreu Humberto Delgado. Recorde-se que em 1957 começaram as emissões regulares da RTP, onde, como muitos outros, Fernando Lopes começou por trabalhar; que em finais dos anos cinquenta se verifica um desabrochar do cinema amador, em que são importantes diversos nomes, entre os quais António Campos; que pela viragem da década surge uma nova crítica de cinema, culta e descomprometida com o regime. Recorde-se que em 1961 começa a primeira das guerras coloniais em que Portugal se envolve, em Angola; que no mesmo ano se dá a ocupação de Goa, Damão e Diu pela União Indiana; que em 1962 se verifica a primeira grande greve académica. Acontecimentos que, todos eles, cada um à sua maneira, contribuíram para sacudir a consciência cívica do país e, juntamente com outros, nomeadamente a abertura ao exterior (influência estética – no início dos anos sessenta, Paulo Rocha trabalhou com Jean Renoir e José Fonseca e Costa com Michelangelo Antonioni) e uma nova consciência do interior (permeabilidade a uma sociedade fechada, que atabafava – Rocha e Reis colaboraram também com Oliveira em “Acto da Primavera”, de 1963, António Reis com Paulo Rocha em “Mudar de Vida”, de 1966, António Campos e outros, no cinema amador, ocuparam-se da realidade portuguesa), levaram a que um novo cinema, com uma nova consciência estética mas também política, se  impusesse como necessário.
                 

             Não quero com isto dizer que as primeiras longas-metragens de Paulo Rocha e Fernando Lopes fossem filmes políticos, nem quero erigi-los, aos filmes, ou aos seus realizadores, em bandeiras contra o sistema de então. Quero apenas afirmar que eles foram elementos de não-conformismo, importantes no contexto social, político, cultural e cinematográfico em que surgiram.
           Aliás, ambos os filmes foram, na época, vivamente discutidos e não houve então, como não haverá hoje (e ainda bem) unanimidade de opiniões: que não eram suficientemente realistas…, que não eram suficientemente narrativos… (como se pode ver, há discussões que se repetem no cinema português).
             Mas entre um passado em que tinham brilhado nomes como Leitão de Barros, Manuel de Oliveira, Brum do Canto, Chianca de Garcia, António Lopes Ribeiro e seu irmão, Francisco Ribeiro (Ribeirinho), Arthur Duarte e Manuel Guimaerães (este sem que, porém, o tivessem deixado brilhar plenamente, tal como aconteceu com Oliveira) e um futuro que antecipam, em que surgem os nomes hoje mais generalizadamente associados ao “cinema novo” português, como António-Pedro Vasconcelos, José Fonseca e Costa, João César Monteiro, Alberto Seixas Santos, o próprio Cunha Telles enquanto realizador, António Reis, são efectivamente Paulo Rocha e Fernando Lopes que assinalam, nas suas primeiras longas-metragens, a viragem mais importante que o cinema português conheceu até hoje, a que só é comparável a ocorrida no final dos anos vinte, a anteceder a transição do mudo para o sonoro em Portugal e durante ela.
                   Paulo Rocha

            O problema não está em que tenham sido eles. Problema poderia ter sido não terem, eventualmente, sido eles porque então poderia ter-se verificado mais um impasse, com um verdadeiro novo cinema, consciente de si e dos seus valores artísticos e estéticos, adiado de novo. Quando surgisse, e acabaria por surgir, seria diferente. Com eles não, o cinema em Portugal tinha mesmo que renascer, ser reinventado a partir do que começaram por fazer.
             É certo que, com o esgotamento financeiro da “Produções Cunha Telles”, em 1967, foi preciso passar pela “Semana de Estudos sobre o Novo Cinema Português” promovida pelo Cineclube do Porto, pelo documento “O Ofício do Cinema em Portugal”, pela Fundação Calouste Gulbenkian e pela criação do Centro Português de Cinema para que o “cinema novo” português pudesse partir para um segundo fôlego. Mas a semente de um novo cinema estava lançada já, pelo Paulo e pelo Fernando, o que, no fim de contas, tendo sido os filmes deles o que foram (e Paulo Rocha filmara ainda “Mudar de Vida”, enquanto Fernando Lopes prosseguira na televisão e no documentário), veio facilitar as coisas para esse novo arranque.
                     

            Como é natural, tanto um como o outro continuaram depois, e não sem dificuldades, com filmes notáveis. Pessoalmente considero mesmo “Uma Abelha na Chuva”, de Fernando Lopes (1972), baseado no romance homónimo de Carlos de Oliveira, o grande filme do “cinema novo” português no seu todo, e “A Ilha dos Amores”, de Paulo Rocha (1982), baseado na vida e na época de Wenceslau de Morais, um dos maiores filmes modernos do cinema mundial. Mas isso não será relevante, na medida em que só a mim compromete, ao pensá-lo e ao escrevê-lo.
            O que importa é que se perceba que depois dos filmes de estreia do Paulo e do Fernando nada podia permanecer como fora no cinema português, apesar do regime, apesar da censura.
                    

            Sem embargo das divergências que possam exisir, e são salutares, quanto à evolução de cada um deles em filmes subsequentes, até aos seus trabalhos mais recentes, são eles os verdadeiros cineastas-charneira do cinema português dos últimos 35 anos. Com a particularidade de ter começado verdadeiramente com eles, e com os filmes de Manuel de Oliveira da mesma época, um renascimento do cinema português, muitas vezes contra tudo e contra quase todos, que mesmo com muitos percalços conduziu ao prestígio internacional de que ele ainda hoje goza.
          Porque com isto quero dizer que, no fundo, todos os que chegaram ao cinema português depois deles receberam o benefício dos caminhos que eles desbravaram e, consequentemente, também a influência de ambos, quero aqui deixar esta palavra singela de homenagem e de gratidão ao Paulo Rocha e ao Fernando Lopes, assim como a todos os que os acompanharam desde o início, entre outros Luc Mirot, Nuno de Bragança, Carlos Paredes, Pedro Tamen, Isabel Ruth e Rui Gomes, ao primeiro, Augusto Cabrita, Baptista-Bastos, Manuel Jorge Veloso, Belarmino Fragoso e a sua família, ao segundo. Sem eles o cinema português não poderia ter sido o que foi e é. Depois deles, todos, quer o queiram quer não, de ambos são devedores. Bom era que mais vezes todos os que fazem do cinema ofício entre nós pensassem nisso, tivessem presentes esses dois destinos maiores que foram também exemplos singulares de uma atitude estética perante o cinema e perante a vida.

(Publicado originalmente sob o título “Dois destinos maiores do cinema português” no nº 26, de Novembro de 1996, da revista “Cinema”, da Federação Portuguesa de Cineclubes, agora integralmente revisto e corrigido.)

Sem comentários:

Enviar um comentário