Graças ao ciclo "Edward Yang: Histórias de Taipei" que, comissariado pelo incansável Augusto M. Seabra, decorreu na Culturgest, em Lisboa, de 13 a 16 de Dezembro, foi-nos possível estabelecer contacto com a filmografia quase completa de um dos mais importantes e míticos cineastas do último quartel do século XX e perceber que ele era, efectivamente, o "missing link" que até agora nos escapara do cinema.
Edward Yang (1947-2007) foi, com Hou Hsiao-Hsien (ver "Tempo de cinema", 20 de Janeiro de 2012) e alguns outros o criador, durante os anos 80 do século passado, de um cinema novo em Taiwan que veio mudar a geografia do cinema e o próprio cinema. Quanto mais o tempo passa melhor se pode entender que ele foi um cineasta decisivo pelos filmes que fez e pelo que compreendeu do cinema como tecnologia e como criação. Não creio que alguém no Ocidente tenha percebido como ele que o cinema é uma mera tecnologia, simples e complexa, que pode ser intransigentemente utilizada de forma criativa por um autor. São a criação e o pensamento dele que, depois de ver os filmes de Edward Yang, aqui me trazem.
Nunca foi claro, e hoje em dia é-o ainda menos, que o cinema seja um instrumento como outros - a escrita, a música ou a pintura - para a criação pessoal de um autor. Estamos todos cada vez mais invadidos por um pensamento tecnológico e económico do cinema, segundo o qual ele é uma indústria que gera produtos caros que devem ser rentáveis num mercado com múltiplos canais de difusão. Por isso, cada vez menos interessa quem é o autor de um filme, salvo para saber se este vende muito, pouco ou nada, e para isso ele, o autor, conta cada vez menos.
Ora Edward Yang foi um criador pessoal de filmes, intransigente na sua própria autoria e na sua necessidade. Fez poucos filmes mas os que fez são absolutamente fundamentais numa arte que não se queira alienada em mera indústria ou comércio. Revelado em "Expectation", episódio de "In Our Time" (1982) e "Taipei Story" (1985), o segundo com Hou Hsiao-Hsien como co-argumentista e actor principal, Edward Yang soube captar e transmitir o pulsar de um tempo novo num espaço determinado, com personagens novas, cheias de energia, de contradições e de uma verdade pessoal própria. A partir daí foi trabalhando e aperfeiçoando uma construção fílmica em coralidade, como diz bem Augusto M. Seabra, em "The Terrorizers" (1986) e "A Brighter Summer Day" (1991), duas absolutas obras-primas, em especial o segundo - não conheço "That Day, on the Beach" (1983).
Muito longo, "A Brighter Summer Day" tem uma história exemplar. Depois de ter circulado numa versão mais curta, o filme só pôde ser restituído à sua versão original, em que é absolutamente fabuloso, graças aos esforços da World Cinema Foundation, criada por Martin Scorsese (ver "A invenção dos sonhos", 22 de Abril de 2012). Foi a essa versão original que agora nos foi dado assistir e assim aceder a toda a beleza e todo o dramatismo duma construção fílmica coral verdadeiramente superior sobre uma juventude, doze anos depois de transferida com a família da mainland para Taipei. Com a sua referência americana no próprio título (o de um conhecido tema de Elvis Presley) e criado a partir de um fait-divers de 1960, este é o filme das famílias, da escola e sobretudo dos adolescentes, seus gangs e preferências, seus desejos e frustrações, suas vinganças e fracassos. O filme que nunca ninguém fez - salvo Apichatpong Weerasethakul em "Bllissfully Yours" (2002), mas sem a coralidade - sobre uma juventude na qual se rebatem e revêem um tempo e uma sociedade. A noite da vingança, o negrume e a chuva dessa noite, são absolutamente únicos e um momento máximo de toda a história do cinema, o que volta a suceder com o prodigioso final entre Xiao Si'r/Chen Chang e Ming/Lisa Yang: nunca ninguém matou assim no cinema - por amor, como amor. É um final cujo lirismo exacerbado e desesperado lembra "O Lírio Quebrado"/"Broken Blossoms", de David W. Griffith (1919), que contudo supera.
Mas a construção coral de "A Brighter Summer Day" vem de "The Terrorizers" e vai prosseguir em "A Confucian Confusion" (1994), filme em relação ao qual o cineasta ainda pôde chamar a si a remontagem final de forma a imprimir-lhe uma construção serial e mais abstracta, que lhe reforça a coralidade em cores e cenários (de que também participou) excepcionais. Estes três filmes situam-se no topo da criação cinematográfica do autor, em que "Mahjong" (1996) surge como fruto de um compromisso e por isso como um filme menos perfeito.
Além do mais, Edward Yang foi um cineasta espantosamente moderno ao integrar as personagens dos seus filmes nos espaços urbanos da cidade de Taipei, urbe pós-moderna e vertiginosa, trabalhando-as do lado das suas ligações, da sua separação e isolamento no labirinto da cidade tomada, ele também, como personagem. A poética de Edward Yang é, assim, dupla: a poética da uma autoria completa e intransigente, que o levou a intervir sempre no argumento dos seus próprios filmes, sozinho ou como co-argumentista, e a poética da construção fílmica polifónica de uma verdade que só o cinema nos seus filmes consegue construir e captar, mesmo se e quando em alternativas indecidíveis, como em "The Terrorizers" nomeamente acontece.
Fala-se, fala nomeadamente Augusto M. Seabra, de influências assumidas de Yang: de Michelangelo Antonioni - pela horizontalidade do espaço, pela integração da arquitectura urbana e dos cenários interiores como elementos dramáticos e pela complexa teia de relações entre as personagens nos seus filmes - de Werner Herzog, Alain Resnais e Stanley Kubrick, que constavam entre as suas preferências cinematográficas. Só quero aqui chamar a atenção para o facto de o próprio cineasta confessar ter visto o fundamental da história do cinema em cassetes vhs e afirmar não temer as novas tecnologias do cinema, das quais dizia, numa demonstração de lucidez e clarividência, que há que " ...utilizá-las com sabedoria e criatividade..." (1).
O outro link que o comissário deste ciclo estabelece é com o japonês Mikio Naruse, conhecido como "o quarto grande mestre do cinema clássico nipónico" por ter sido o último a ser descoberto no Ocidente, depois de Kenji Mizoguchi, Yasujiro Ozu e Akira Kurosawa, e aí penso também que é "Yi Yi" (1999), o último filme de Edward Yang, que na sua coralidade familiar vai mesmo nesse sentido, além da generosidade que ele atribuía a Naruse e ele próprio usou nos seus filmes. Apaixonado pela manga japonesa, em especial pelos desenhos de Osamu Tezuka, o cineasta, que confessava a sua admiração pelo arquitecto I. M. Pei, por Albert Einstein, Maria Callas e Bob Dylan, preparou desde 2002 um grande projecto de animação digital, "The Wind", que não chegou a poder concretizar.
Com a morte deste cineasta desapareceu uma figura fundamental do cinema mundial, que há que conhecer por si mesma, pelos seus filmes e pelo próprio cinema, em contexto de pós-modernismo e de capitalismo globalizado, num capitalismo tardio e em sociedades pós-contemporâneas como refere o filósofo norte-americano Fredric Jameson no excelente ensaio que lhe dedicou (2). Um cineasta da invulgar qualidade de Edward Yang não viveu em vão: ele foi um dos maiores visionários do cinema e "A Brighter Summer Day" é o melhor filme do mundo (3).
Agora há que perceber que o realizador deve ter a liberdade de fazer o filme que quer e de finalizá-lo como quer, como Edward Yang defendia para si próprio e para os outros e o caso de "A Sede do Mal"/"Touch of Evil", de Orson Welles (1958), agora reeditado em dvd, permite confirmar (ver "Sem noite, sem sono", 17 de Março de 2012, nota 1), com consequências inimagináveis para a história e a teoria do cinema.
Quando refiro e sublinho a importância da autoria cinematográfica para Edward Yang tenho também, e até especialmente em conta que ela é sempre necessária para se poder continuar a falar, na linha de Jean-Claude Biette, de uma "poética dos autores" no cinema (4).
Nota
(1) Cf. Edward Yang, "Uma nova escrita", Le Monde, 22 de Abril de 1994, publicado em português em anexo ao programa do ciclo "Edward Yang - Histórias de Taipei", que contém ensaios muito completos de Augusto M. Seabra, a que aqui com a devida vénia recorro extensivamente e para os quais remeto.
(2) Cf. Fredric Jameson, "The Geopolitical Aesthetic - Cinema and Space in the World System", Indiana University Press, 1995, Capítulo 2, Remapping Taipei, pág 114 (edição francesa "Fictions Géo-politiques - Cinéma, capitalisme, postmodernité", Capricci, Paris, 2011, capítulo 2, Recartographier Taipei, pág 49). Neste capítulo o autor procede a um extenso, pormenorizado e notável estudo de "The Terrorizers", que o situa no cinema da época, nomeadamente em relação a Hou Hsiao-Hsien e na sua relação com Taipei, e inclui o seu comentário alegórico.
(3) Sobre este cineasta importa também "Le cinéma d'Edward Yang", de Jean-Michel Frodon, Éditions de l'éclat, Paris, 2010. Este autor francês dirigiu também "Hou-Hsiao Hsien", com Prefácio de Olivier Assayas, Cahiers du Cinéma, Paris, 1999 (2005 para a 2ª edição, aumentada).
(4) Cf. Jean-Claude Biette, "Poétique des auteurs", Éditions de l'Étoile, Paris, 1988.
Quando refiro e sublinho a importância da autoria cinematográfica para Edward Yang tenho também, e até especialmente em conta que ela é sempre necessária para se poder continuar a falar, na linha de Jean-Claude Biette, de uma "poética dos autores" no cinema (4).
Nota
(1) Cf. Edward Yang, "Uma nova escrita", Le Monde, 22 de Abril de 1994, publicado em português em anexo ao programa do ciclo "Edward Yang - Histórias de Taipei", que contém ensaios muito completos de Augusto M. Seabra, a que aqui com a devida vénia recorro extensivamente e para os quais remeto.
(2) Cf. Fredric Jameson, "The Geopolitical Aesthetic - Cinema and Space in the World System", Indiana University Press, 1995, Capítulo 2, Remapping Taipei, pág 114 (edição francesa "Fictions Géo-politiques - Cinéma, capitalisme, postmodernité", Capricci, Paris, 2011, capítulo 2, Recartographier Taipei, pág 49). Neste capítulo o autor procede a um extenso, pormenorizado e notável estudo de "The Terrorizers", que o situa no cinema da época, nomeadamente em relação a Hou Hsiao-Hsien e na sua relação com Taipei, e inclui o seu comentário alegórico.
(3) Sobre este cineasta importa também "Le cinéma d'Edward Yang", de Jean-Michel Frodon, Éditions de l'éclat, Paris, 2010. Este autor francês dirigiu também "Hou-Hsiao Hsien", com Prefácio de Olivier Assayas, Cahiers du Cinéma, Paris, 1999 (2005 para a 2ª edição, aumentada).
(4) Cf. Jean-Claude Biette, "Poétique des auteurs", Éditions de l'Étoile, Paris, 1988.
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