“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

O método de Haneke

           "Amor"/"Amour", o mais recente filme de Michael Haneke (2012), será um filme difícil mas é incontroversamente um excelente filme, em que o cineasta prossegue de forma coerente e consistente um percurso pessoal e intransigente. O filme pode ser acusado, como filmes anteriores do cineasta, de académico, não audacioso, do que discordo, mas mesmo que tal fosse verdade teria de ser compreendido no contexto próprio da obra do autor, em que o que de dramaticamente relevante acontece em cada filme deve surgir intacto no seu momento próprio num contexto cinematográfico preciso, que o torne inesperado e ultrajante. Assim tem sido nos filmes anteriores do cineasta e assim volta a ser, de modo superior, neste seu mais recente trabalho.
                   Amour film still
            No seu ambiente doméstico, familiar, um casal de velhos professores de música, Georges e Anne, debate-se com o seu próprio isolamento - apenas quebrado por esporádicas visitas, nomeadamente da filha, Eva/Isabelle Huppert - e envelhecimento, e essa situação assume uma forma quase banal, quotidiana, nas interpretações superiores e plenas de humildade e galhardia de Emmanuelle Riva e Jean-Louis Trintignant, que trazem para o interior do filme toda a história e a memória do cinema da segunda metade do século XX. Depois de um primeiro momento de ausência, ela tem um ataque cerebral que a paralisa parcialmente, o que origina a sua degradação progressiva, e ele vai ter de tomar conta dela em tais circunstãncias. O que aqui surge como particularmente revelador é o ambiente de memórias, de música e de pintura, o ambiente familiar e artístico em que o filme decorre e em que o seu final, no seu dramatismo próprio, vai eclodir.
       Deste modo, "Amor" surge como um típico filme de Michael Haneke, que se joga em fronteiras de indecisão, neste caso entre a vida e a morte mas também entre a realidade e a fantasia, o que lhe imprime um tom muito próprio e uma complexidade inequívoca, que tornam irrelevantes as suas hipotéticas limitações formais e o transformam numa obra exemplar de rigor, inteligência e exigência. Como nos outros filmes do cineasta, a violência, o horror, declara-se em pleno banal quotidiano, que vem clarificar e resolver - ou entenebrecer e complexificar.   
                             
            Haneke é um mestre do cinema contemporâneo que não tem que andar a correr atrás da última moda formal para impôr os seus filmes, já que são estes que se impõem por si próprios, tal como são e mesmo se nem toda a gente gosta. Sem música, a não ser a que, diegética, é tocada no seu decurso (Beethoven, Schubert), este é um filme de artista que nem sequer pode ser acusado de novo academismo já que permanece intransigentemente fiel a si próprio. Se, como recorda em contexto Herberto Helder, "«Apenas a arte é susceptível de nos salvar»", neste caso a arte, além de ser a do próprio realizador, como habitualmente nos seus filmes também argumentista e que aqui faz pensar em Ingmar Bergman, é também, como nos seus outros filmes mas mais do que nunca, a grande arte dos seus actores. E "Amor" rima perfeitamente na obra deste cineasta austríaco com "A Pianista"/"La pianiste" (2001).

2 comentários:

  1. … quanto ao fim do filme?
    Julgo haver duas possibilidades. Efectivamente o fim pode estar no início do filme, na precisa ocasião em que a casa é violada. Em particular o quarto, que é aliás uma espécie de túmulo que vimos ser preparado por Georges, é realmente devassado: janelas aberturas, corrupio de polícias e bombeiros, etc....
    Mas o fim pode também iniciar-se com a cena da água a correr e a loiça a ser lavada por Anne. Significa que o filme, que é já ficção, dobrou-se sobre mais ficção. Tudo o que de seguida acontece, ficção dentro da ficção, é anúncio de fim que está próximo: Anne a vestir o casaco, a chamar Georges, este a vestir o casaco e sair com ela de casa e a fechar a porta. Ele é o último, naturalmente não sabemos o que lhe aconteceu, mas sabemos, isso sim, que ele deixa a partir daquele momento de existir. Depois a filha regressa, ocasião para a ficção inicial, a que é própria do filme, regressar também. A casa está agora vazia como lugar do nada, e para provar que a casa já não é alma de ninguém, ela percorre-a debaixo de um silêncio absoluto, onde não há qualquer sinal de respiração. Nem sequer precisa de ir ao quarto onde a mãe morreu e foi encontrada. Para reforçar bem esta ideia de fim, como sinónimo de "depois de tudo o que aconteceu" ela senta-se no lugar do pai. Ela só poderia fazer isso, após todo aquele sucedido: morte da mãe, identificação do corpo, reconhecimento da não existência do pai. Por isso, o fim é a prova de que nenhum dos dois existe e de que o amor acompanhou a morte.

    AJR
    01_2013

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    1. O fim não está no princípio, ao contrário do que se poderia pensar. A hipótese benévola de que tudo não tivesse passado de um devaneio de Georges durante o concerto inicial pode ser descartada pela forma precisa e impiedosa, à sua altura, como Michael Haneke situa o filme a partir do seu início, sem deixar pontas soltas que possam ser recuperadas no fim. Não, “Amor” não é apenas um devaneio de velho professor, é o que entre o casal foi preparado ao longo do filme. Talvez seja mesmo esse lado pouco gentil do cineasta que afastou alguns deste filme, que não deixa qualquer espaço para qualquer tipo de consolação, mesmo no tempo. Preciso, o cineasta começa por um depois, que anuncia o filme, e termina no seu fim justo, sem espaço para manobra. Penso que é isso que alguns não lhe perdoam: ter feito um filme não sobre a ideia do fim mas sobre a sua realidade mesma, sem lamechices melodramáticas mas como uma pura e simples realidade da natureza humana. Como todos sabemos.
      O espaço para a fantasia é, a meu ver, o sonho de Georges e, no final, quando a água começa a correr na cozinha para Anne, até ele sair também de casa. Atrás dela.

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