"Deste Lado da Ressurreição", de Joaquim Sapinho (2011), é um filme inesperado, arriscado e muito interessante, que coloca o cinema perante os limites da sua capacidade expressiva e narrativa. Digo inesperado porque nada na obra anterior do cineasta português aparentemente o anunciava. Digo arriscado porque é na sua maior parte construído em planos fixos, que os reenquadramentos necessários quando está em causa o mar e um ou outro movimento de câmara não vêm negar. Digo muito interessante porque, ao colocar de novo a questão da natureza do plano, lhe responde em termos de imagem e som, mas também com uma imagem que, mesmo quando dotada de profundidade de campo, funciona mais como camadas sobrepostas, justapostas e menos como espaço.
O motivo narrativo escolhido por Joaquim Sapinho é, em si mesmo, simples, pois parte da existência de um jovem surfista, Rafael/Pedro Sousa, desaparecido da casa dos pais depois da morte do pai e de quem a mãe/Sofia Grilo disse à irmã, Inês/Joana Barata, ter ido trabalhar para a Austrália. Quando Inês, após o contacto estabelecido com Rafael, se apercebe do engano, desinteressa-se do resto e vai tentar seguir o irmão. Ora por onde (e para onde) ele andava era num convento, na procura de uma eventual vocação monástica.
Percebe-se que a esta narrativa sirva bem o modelo do plano fixo que o cineasta investe, na sua pura concentração em personagens de escassa mobilidade e numa narrativa rarefeita. Onde Sapinho consegue superar o mero tique formal é no muito apropriado uso do espaço visível do plano e do fora de campo e na construção de cada plano por camadas sucessivas, que funcionam mais como uma pintura ou uma colagem do que na criação do espaço em profundidade, que justamente negam ao conferirem ao plano um efeito de superfície.
Aproximadamente a meio do filme, a palavra, que rareia durante a sua maior parte (a música está sempre ausente), reveste a forma de leitura de uma descrição da morte de Cristo enquanto no espaço visível do plano permanece um monge que escuta. Este plano é admirável justamente porque prossegue após o fim da leitura, em silêncio, sobre o rosto do monge em que é suposto passar a emoção e a reflexão. Ora, fazendo lembrar o célebre "efeito Kulechov", o espectador associa a um rosto inexpressivo os sentimentos que as palavras anteriores são supostas suscitar, o que faz com que esse plano, além de ser muito bom, funcione muito bem.
Mas, além da construção visual e auditiva seca e precisa, vai ser a construção do plano visual que, em formas que se ligam em contiguidade e em cores que variam com subtileza, vai permitir ao realizador estabelecer decisivamente o interesse deste seu filme, que funciona visualmente em termos de superfície plana, puramente bidimensional, e não de profundidade de campo, um tanto como em Carl Th. Dreyer mas a cores. O efeito que daqui resulta é muito bom e faz como que rebater sobre a superfície do plano qualquer dramatismo da imagem, suavizando-a.
Por último, em termos de narrativa o cineasta oferece um final elíptico, com imagens suaves da natureza - o castanho e o verde da floresta - que se sucedem a imagens que sugerem o apaziguamento do protagonista, o que diz pelo que mostra tudo o que é necessário à nossa compreensão do que ali está em causa.
No seu todo, este filme é uma espécie de "ovo de colombo" de Joaquim Sapinho, que nos reconduz a uma vocação expressiva e narrativa original e primitiva, muito pura e específica do cinema. Embora a opção do protagonista, Rafael, possa ser vista entre a fuga ao mundo e a vocação, o que em "Deste Lado da Ressurreição" sobretudo importa é que a sua irmã, Inês, só o queria seguir até ao mar.
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