“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Poéticas do tempo

          O grande cineasta moderno grego Theo Angelopoulos (1935-2012), que foi um mestre na conjugação de um olhar sobre a história e do uso do plano-sequência muito longo, com lentos e elaborados movimentos de câmara, fez de "A Poeira do Tempo"/"I skoni tou hronou" (2008), o seu último filme concluído, um filme admirável, que culmina uma obra superior brutalmente interrompida. O plano-sequência muito longo não foi, no caso dele, um mero requinte formalista, antes esteve de acordo com uma abordagem do passado, da história, sobre a qual permitia um olhar demorado e atento, propício à reflexão.
                  Theo Angelopoulos
     O filme mais conhecido de Angelopoulos, que o tornou famoso, "A Viagem dos Comediantes"/"O thiasos" (1975), permitiu-lhe um uso muito apropriado e já sistemático do plano sequência longo e elaborado numa Grécia em crise, partilhada e dividida entre o final dos anos 30 e o início dos anos 50. Mas já aí, e por intermédio do teatro, a história da cultura grega permitia a tentativa de analisar e esclarecer um passado mais recente, o tempo da II Guerra Mundial. Essa reflexão foi prosseguida em "Alexandre, O Grande"/"O Megalexandros" (1980) e em filmes como "Um Táxi para Cítara"/"Taxiditi sta Kythira" (1984), "O Passo Suspenso da Cegonha"/"To meteoro vima tou pelargou" (1991) e "A Eternidade e Um Dia"/"Mia aioniotita kai mia mera" (1998), que lhe permitiram questionar a história, antiga e moderna, do seu país e a actualidade do final do século numa zona, os Balcãs, dividida e atravessada por conflitos graves, enquanto "O Apicultor"/"O melissokomos" lhe proporcionou uma homenagem, sentida e comovida, à sua terra. 
                     http://www.oribatejo.pt/wp-content/uploads/2011/02/filme-a-poeira-do-tempo.jpg
       A relação de Theo Angelopoulos com o próprio cinema no interior de um filme tem um primeiro momento decisivo em "O Olhar de Ulisses"/"To vlemma tou Odyssea" (1995), que é um filme fabuloso, e vai prosseguir com o seu derradeiro filme concluído, "A Poeira do Tempo", o segundo filme da trilogia iniciada com "The Weeping Meadow"/"To livadi pou dakryzei" (2004), de que já não pôde fazer o terceiro. Ora o que é muito curioso é que, sempre a lidar com a história, do seu país e do mundo, o cineasta extremava no primeiro filme da trilogia o uso do plano-sequência muito longo, utilizando-o até ao excesso, enquanto que em "A Poeira do Tempo" faz um uso muito mais leve e equilibrado dele, de forma a retirar-lhe a solenidade que nos seus filmes anteriores lhe estava associada e a tornar perfeitamente claro o filme e as suas personagens, num tom mais leve do ponto de vista fílmico, na abordagem da Europa e do mundo desde os anos 50 até ao final do Século XX.
                      "A Poeira do Tempo", último longa de Theo Angelopoulos, abre o programa hoje à noite
             Com uma grande variedade de personagens e situações, e a partir de um filme que está a ser feito, o cineasta coloca o filme que está a ser feito no interior do seu filme, e o respectivo realizador, A/Willem Dafoe, a dialogar com os seus próprios pais, Eleni/Irène Jacob e Spyros/Michel Piccoli, que são as personagens do seu filme, cuja vida ele procura descobrir e reconstituir a partir da vida e dos amores dela. Cobrindo diferentes gerações e, consequentemente, diferentes momentos históricos e diferentes atitudes perante a vida, "A Poeira do Tempo" é talvez o filme que melhor resume a relação de Angelopoulos com a história e com o cinema e aquele em que ele atinge um estilo mais depurado, mesmo na liberdade com que faz encontrarem-se personagens de tempos diferentes, e em momentos diferentes das suas vidas, num mesmo espaço e em espaços diferentes - o que significa colocar o realizador, A, no interior do seu próprio filme.
       Além disso, ou por isso mesmo, surge com inteira justificação narrativa a alusão a "Alemanha Ano Zero"/"Germania, anno zero", de Roberto Rossellini (1948), entendida como perfeitamente natural na filha de A que, à deriva com o divórcio dos pais, vai justamente parar à Alemanha, onde o pai e os avós a vão procurar e encontrar - e toda essa secção do filme está muito bem resolvida com planos-sequência em movimento de câmara, que situam, relacionam, separam e aproximam as personagens. Mas esta alusão é concluída com a personagem de Jacob/Bruno Ganz - actor que foi um dos anjos, Damiel, de "As Asas do Desejo"/"Der Himmel über Berlin", de Wim Wenders (1987) -, que vai acabar por não aguentar a relação com a ideia da terceira asa e fazer o que a pequena Eleni acabara por não fazer. No final, e saltando uma geração à deriva, avô e neta partem de mãos dadas, mas ao nosso encontro.
                      TRILOGIA II: A POEIRA DO TEMPO              
           O tempo de que o cineasta grego, sempre argumentista dos seus filmes, se ocupou foi, assim, duplo: o da história e o da duração dos planos, e em ambas as questões ele soube construir poéticas próprias, da história e do tempo, que no seu último filme atingem um equilíbrio justo, conseguido e perfeito, para o qual a música do seu compositor habitual, Eleni Karaindrou, dá um contributo muito importante. O tempo ficou reduzido a poeira, como os sonhos das personagens do filme dentro do filme e de "A Poeira do Tempo" a desfazerem-se e desvanecerem-se, mas o cinema de Theo Angelopoulos fica como um testemunho notável sobre a Grécia e o Século XX e, pelo seu alcance temático e a sua estética ousada e muito bem defendida ao relacionar a dilatação do espaço e do tempo com a observação analítica da história, como uma peça absolutamente imprescindível do cinema moderno europeu
        "J'ai l'impression qu'on essai d'être sujet de l'Histoire mais que, finalement, on en est l'object." (Theo Angelopoulos, em entrevista concedida em Atenas, em 2 de Agosto de 2008, à revista francesa Positif, que a publica no seu nº 624, de Fevereiro de 2013, em que lhe dedica um dossier muito importante).

Nota
Sobre a História do Século XX é neste momento fundamental conhecer o historiador inglês Tony Judt (1948-2010), de que se encontram disponíveis em português, nomeadamente, "Pós-Guerra: História da Europa Desde 1945", "O Século XX Esquecido" e "Pensar o Século XX" (co-Timothy Snyder) - Lisboa, Edições 70, 2006, 2009 e 2012, respectivamente.

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