“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Sem saída

       O mais recente filme de Paul Thomas Anderson, "The Master - O Mentor"/"The Master" (2012), só poderá surpreender quem só agora acedeu à sua obra. De facto, a personagem maior do que a natureza, neste caso Lancaster Dodd/Philip Seymour Hoffman, vem pelo menos do anterior "Haverá Sangue"/"There Will Be Blood" (2007) e destina-se a conferir uma figura que seja um ponto de atracção sólido à narrativa e ao filme. Sendo uma personagem controversa, assume a sua pretensa superioridade perante os mais a partir de uma determinada doutrina, que pretende sobrepor-se às demais e a todos os outros, o que, tanto quanto sabemos, não é incomum na América.  
                            
       Situado no pós-guerra, em 1950, e considerado como inspirado na história de L. Ron Hubbard, fundador do culto da cientologia, "The Master - O Mentor" tem em Freddie Quell/Joaquin Phoenix o seu verdadeiro protagonista, aquele que, no fim da II Guerra Mundial, quando o desemprego atingiu os soldados regressados da guerra, vai entrar na órbita de Dodd e submeter-se à sua seita. Tornado um mero instrumento, submetido e fanatizado, ele acompanha o seu líder sem nunca verdadeiramente lhe fazer frente, salvo quando ambos são presos. Paranóico e errático, Freddie sujeita-se, aplaude, agride, submete-se a experiências, enquanto o seu mentor progride e prospera, sem nunca sabermos ao certo até que ponto se levam a sério e respeitam um ao outro. Por sua vez, o mar, a hipnose, a sessão de cinema, a corrida solitária de moto no deserto introduzem no filme um inequívoco lado onírico, que nega o seu realismo de primeiro grau, puxando-o mais para o lado de "Embriagado de Amor"/"Punch-Drunk, Love" (2002). E quanto mais não seja por aí, mas também pelo alcool e pela linha do horizonte (o limite visual do plano), Freddie foge, escapa-se ao domínio do mentor, que aparentemente aceita.     
          Centrado e concentrado nestas duas personagens, Lancaster Dodd e Freddie Quell, o filme tem uma progressão dramática que acompanha a deslocação espacial das personagens, mas nos seus momentos mais fortes centra-se mesmo nelas, nas personagens, nos actores e nas actrizes - com destaque, entre estas, para Amy Adams como Peggy Dodd e para a chegada de Laura Dern como Helen Sullivan ao universo do cineasta -, em diálogos simples e directos que se pretendem reveladores. Nessas circunstâncias o cineasta faz um grande e apropriado uso do primeiro plano e do grande-plano, sem prejuízo do que, na linha do seu trabalho anterior, volta a recorrer às desfocagens do fundo ou do primeiro plano, introduzindo desse modo um elemento visual específico e relevante na parte puramente visual do filme e na sua narrativa.
                           
         Não apenas por isso, mas por uma mise en scène que utiliza muito bem o fora de campo, as recorrências de espaços e personagens, uma composição do plano, quase sempre fixo, que o torna mais expressivo, e também devido a actores extraordinários, Paul Thomas Anderson, como sempre também argumentista, faz deste seu novo filme mais uma peça para a sua decifração da América, perfeitamente consistente com o que fez antes. Ele é, como Gus Van Sant, um poeta de um país contraditório e desconhecido de si mesmo, que para o abordar se serve de meios cinematográficos novos, nomeadamente na construção visual do espaço e da narrativa, de uma narrativa que, como o filme, não se limita a um primeiro grau, imediato, antes se desenvolve sobre o realismo pelos meandros do inconsciente, aqui usando também como pretexto a viagem no tempo.
         A sua poética é, assim, uma poética do espaço, do plano e da montagem, e uma poética da descoberta, uma vez que ele não parte de certezas mas pretende aceder ao conhecimento e à revelação dos aspectos mais duros da América por meios cinematográficos próprios, sem complacências nem idealismos mas usando o cinema como instrumento de procura e de descoberta, de questionamento e de assombro. E uma vez terminado o filme, como durante ele, o mistério, tanto de Dodd como de Quell, persiste
                   
       Aparentemente situado na descendência de Eric von Stroheim e Orson Welles (ver "Paul Thomas Anderson: O Enigma", 20 de Janeiro de 2012, e "Mosaico vivo", 30 de Março de 2012), Paul Thomas Anderson não se deixa classificar facilmente, já que está a reinventar o cinema e a descobrir o seu país com uma poética inquieta e inquisitiva, que não se dá nem nos dá tréguas, antes nos inquieta e surpreende - e ainda bem que assim é. Superar o confronto final, que era decisivo em "Haverá Sangue", de forma inconclusiva, poderá deixar o espectador perplexo em "The Master - O Mentor", que pela sua própria irresolução, com Freddie à deriva, impõe como desenlace uma personagem sem saída, tal como se apresentava no início do filme, que assim assume uma circularidade muito interessante, depois de cumprido um percurso narrativo e dramático revelador
                    
       Num filme em que Freddie Quell faz lembrar as personagens à deriva, presas de si mesmas, que Marlon Brando interpretou no pós-guerra, precisamente durante os anos 50, nomeadamente em filmes de Elia Kazan, Joaquin Phoenix tem uma composição extraordinária, frente a um Philip Seymour Hoffman soberbo.
     Consta que o cineasta vai abordar agora uma obra de Thomas Pynchon: "Inherent Vice" - "Vício Intrínseco" na edição portuguesa (Lisboa, Bertrand, 2010). Nada de mais natural. A expectativa aumenta

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