“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Um outro samurai

        Johnnie To é o actual grande mestre do filme de gangsters no cinema de Hong Kong. Mal conhecido em Portugal, o Indie Lisboa 2008 dedicou-lhe uma boa retrospectiva, que permitiu ficar a conhecer quase todos os seus principais filmes e descobrir que ele é, no seu melhor, também devedor de uma inspiração em Akira Kurosawa.          
        "Vingança"/"Vengeance"/"Fuk sau" (2009) é talvez o ponto mais alto da sua obra até agora, o filme em que ele faz desembarcar no seu universo peculiar, em Macau, um francês, Francis Costello/Johnny Hallyday, que consigo para o filme e o universo do cineasta traz a memória de Jean-Pierre Melville, via nomeadamente "O Ofício de Matar"/"Le Samuraï" (1967), filme que em certos momentos e em certos aspectos cita expressamente e em que já Jim  Jarmush se inspirara para "Ghost Dog - O Método do Samurai"/"Ghost Dog: The Way of the Samurai" (1999) - no filme de Melville, Alain Delon interpretava Jeff Costello, embora aqui Johnny Hallyday faça lembrar mais Yves Montand, nomeadamenet em "O Círculo Vermelho"/"Le Cercle rouge" (1970) do mesmo grande cineasta francês.
                      
        E que estranho filme é este, em que o protagonista, querendo vingar o grave ferimento da  sua filha, Irene Thompson/Sylvie Testud, e a morte dos seus netos e do marido dela, vai desencadear uma guerra entre tríades, de Macau e Hong-Kong, para, em pleno combate, ele próprio, que tem uma bala alojada no cérebro, perder a memória e não saber já sequer o que quer dizer vingar-se. O combate entre as tríades prossegue sem ele, até que, graças ao nome do responsável pelo que aconteceu à filha, George Fang/Simon Yam, escrito na sua arma, e ao efeito de uma série de choques de automóveis que, em fuga, provoca, recupera o suficiente a tempo do embate final. 
                     Vengeance
         O que faz de Johnnie To um cineasta notável é o facto de ele ser um estilista do cinema, da mise en scène e da montagem, o que se manifesta neste filme por uma câmara ora fixa, em diferentes escalas mas com um uso notável do grande-plano e do plano de pormenor, ora em movimento mas num movimento inteligente, que abre espaços para se deter sobre alguém ou alguma coisa relevante, criando assim uma geometria do plano que a montagem se encarrega de ligar de forma ritmada e tensa. Desse modo o seu estilo integra um género clássico de que, em termos modernos, se apropria, faz seu com características narrativas e formais próprias, com a sua assinatura - "Triângulo"/"Triangle"/"Tie saam gok" (2007), filme co-dirigido com  Ringo Lam e Tsui Hark, tinha sido um interregno interessante.
          Mas "Vingança" é um filme notável, com diversos momentos muito bons, como o encontro de Frank com o trio que o vai ajudar, nos corredores do hotel, a ideia de fotografar os seus membros para os identificar, o duelo entre as tríades no meio do vento, da poeira e dos papéis que voam, que decorre já sem ele, a noite de lua cheia em que o mesmo Frank ajoelha na areia e pede a ajuda de Deus, enquanto os fantasmas dos ausentes vêm ter com ele, o duelo final entre ele e Fang, com pormenores muito bem achados - os colantes.
         Longe dos caminhos mais frequentados pelo cinema do género de  Hong Kong, muito importante desde os anos 80 do século XX, embora colhendo dele códigos e maneiras, mas depurando-os, o cineasta tem traçado um percurso original e pessoal que faz dele o melhor cineasta de Hong-Kong e do filme de gangsters actual, ombreando quando não excedendo os melhores cineastas americanos que se lhe dedicam - James Gray, Michael Mann. E ele filma a um ritmo de vários filmes por ano, o que, tendo-se estreado em 1980, faz dele um cineasta com uma obra já muito vasta e apreciável.   
                    An Official Website for Johnnie To's Vengeance! 
          É claro que se justifica uma maior divulgação do cinema de Johnnie To em Portugal, já que ele é um dos grandes cineastas contemporâneos a nível mundial, que por isso não merece em caso algum ser tratado como mais um exotismo asiático, mesmo num país periférico com o nosso, que não se pode dar ao luxo de ignorá-lo ou de minimizá-lo.

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