Devo começar por dizer que não sou especialmente adepto do Dogma 95 que, subscrito nomeadamente por Lars von Trier e Thomas Vinterberg, veio agitar as águas de um certo marasmo conformista do cinema europeu no final do Século XX. Eu sei que manifestos como esse podem ser úteis, esclarecer as coisas e as intenções, tal como sei que nisto, especialmente no cinema, a publicidade ajuda, mas considero que as promessas contidas no manifesto inicial, mais tarde acrescentado, receberam concretização escassa e em termos pelo menos de discutível utilidade. Dito isto, devo esclarecer que não tenho mais nada contra o Dogma 95 e que reconheço mesmo que alguns dos seus membros são bons cineastas, o que provavelmente seriam mesmo sem ele.
"A Caça"/"Jagten", o mais recente filme de Thomas Vinterberg (2012), é um filme muito bom e interessante que lida com uma questão difícil de uma maneira muito segura e inteligente. Acusado por uma das crianças com que lida no jardim-de-infância onde trabalha de algo que não cometeu - e sabemos desde o início que a acusação é falsa -, Lucas/Mads Mikkelsen, um homem com uma vida normal e corrente, divorciado e com o qual o filho, Marcus/Lasse Fogelstrom, quer ir viver, tem de fazer frente ao inesperado, que vai crescendo de proporções com a reacção da comunidade local e o alastrar das acusações.
O filme tem o seu melhor nesse fazer frente do protagonista, que passa de uma posição passiva e expectante a uma atitude activa, com a qual desafia e pede contas àqueles que o acusam, especialmente depois de ter sido recusada a sua prisão por motivos óbvios. Amigo do pai de Klara/Annika Wedderkopp, a pequena que inicialmente insinuara um comportamento ofensivo da sua parte, Lucas tem de se defender da hostilidade da comunidade, naquelas condições em certa medida compreensível, e procura chamar o seu amigo à razão.
Um ano depois depois daquele Natal tudo terá sido devidamente esclarecido, e Lucas pode passar a espingarda de caça simbólica a Marcus, no meio do grupo de amigos em que todos se conhecem há muitos anos. Mas é também pela sua construção formal, com largo recurso aos planos aproximados, um tratamento muito bom do espaço em interiores e em exteriores, com oportunas panorâmicas horizontais, um trabalho muito seguro e em contenção dos actores, com destaque para Mads Mikkelsen, que "A Caça" se impõe como um filme muito bom, que não brinca com o seu tema, tratado de maneira inteligente e não especulativa, oferecendo um bom retrato de uma pequena comunidade em que todos se conhecem e em que, contudo, a suspeita surge e se instala. Um retrato de tal maneira maneira justo que podemos ser levados a pensar que o conflito se tornou indispensável para a consolidação daquela comunidade e compreender perfeitamente a alucinação final do protagonista durante a nova caçada.
Por tudo isto, mais a espantosa floresta dinamarquesa em que vivem corças e alces, este é um filme muito actual e belíssimo, que transmite uma imagem muito percuciente de uma sociedade dita de abundância, em que todo o tipo de problemas pode, contudo, surgir, e com eles as pessoas comuns atingidas, tal como as acusadoras, têm que lidar, aprendendo a conhecerem-se melhor. Contra a indiferença, "A Caça" de Thomas Vinterberg é um filme que não nos deixa indiferentes - e a indiferença é um mal em si, foi contra ela que o Dogma 95 surgiu e nessa medida estou com ele -, que apresenta uma outra face da sociedade dinamarquesa em relação a "A Festa"/"Festen" (1998) do mesmo cineasta, o filme que para o seu nome começou por chamar a atenção. O que vem provar que, no seu melhor, o Dogma 95 ainda hoje não desilude.
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